segunda-feira, 7 de julho de 2008

Identidade e Auto-estima: Uma visão para Afro-descendentes

Identidade e Auto-estima: Uma visão para Afro-descendentes
Por: Valter da Mata

A identidade é a questão central por ser compreendida como um constructo que envolve o indivíduo, portanto algo pessoal, escolhido e produto de sua própria autoria; contextual por desenrolar-se no contexto onde o indivíduo atua e interage portanto tem um aspecto cultural; social por necessitar da validação desse constructo pelo outro como pertinente e histórico uma vez que as ocorrências de construção e transformação se dão num espaço e ao longo de uma vida.
A identidade é vista de uma forma concreta, objetiva mas, a maioria do processo se dá na subjetividade do autor e dos atores que possibilitam a articulação do individual com o universal. Ou seja, os modelos se apresentam e atuam no coletivo, mas o processamento é resultante do processo de cada um.
Segundo Erikson (1976), a formação da identidade é algo processual, histórico, referenciado. Ele ressalta a importância do modo como se dão as conquistas do indivíduo e como são resolvidos os conflitos. Isso envolve de forma singular as figuras parentais e outros modelos de referência para o indivíduo e mais tarde o contexto em que está inserido.
As figuras parentais reforçam, rejeitam ou se omitem perante as identificações demonstradas pelo indivíduo e, conforme essa correlação de fatores adicionadas ao processo de socialização, o indivíduo construirá um modelo de identidade que permitirá que ele atue da maneira que se sinta mais coerente com as crenças aprendidas durante todo o percurso da formação da sua identidade.
“A criança em crescimento vê a cada passo uma sensação vitalizante da realidade a participar da percepção de que sua forma individual de dominar a experiência é uma variante bem sucedida de uma identidade grupal e está em harmonia com seu espaço-tempo e com o seu plano de vida. Ou seja a identidade será autêntica se validada pelo seu grupo de referência através do reconhecimento como realização com significado na cultura.” (Erikson, 1976)
Ferreira (2000) percebe identidade como um processo dinâmico em torno do qual o indivíduo se referencia, constrói a si e a seu mundo e desenvolve um sentido de autoria. Assim ela possui uma direção, um propósito e obedece a uma política pré determinada. Caminha na direção que aponta uma melhor adaptação do indivíduo de forma que ele possa entender e viver o melhor possível no seu mundo dentro da sua própria concepção. O propósito é adquirir uma estabilidade emocional, relacional e política uma vez que precisa estar em conformidade com as exigências do seu meio e está em jogo toda uma relação de poder e força por trás de cada concepção, valor e organização da sociedade da qual ele é produto e produz.
Em Ciampa (1996) a identidade vista como movimento, correlação de forças e morte-vida, ou seja algo que se atualiza o tempo inteiro portanto, trazendo em si a idéia de ciclo, onde se apreende, se mantém, se descobre outras possibilidades, se avalia, se complementa, se abandona algo, se transforma, se integra. Esse processo não é linear e nem ocorre da mesma forma com todos os indivíduos, todo processo pessoal, social e histórico tem que ser levado em conta.
A identidade étnica e seus estágios
Para entendermos a identidade do afro-descendente, precisamos inicialmente conceituar identidade étnica. Tratando-se de Brasil, ressaltamos notadamente as características fenotípicas, particularmente a cor da pele. d'Adesky, salienta como Abou (1985) define grupo étnico como "indivíduos que possuem, a seus próprios olhos e diante dos outros, uma identidade distinta, enraizada na consciência de uma história ou de uma origem comum. Esse fato de consciência tem por base os dados objetivos de uma língua, de uma raça, ou de uma religião comum, às vezes de um território, instituições ou traços culturais comuns, embora possam faltar algumas dessas características". Assim sendo a identidade ética, vem a ser o auto-reconhecimento de pertença a um grupo de origem, ser reconhecido como pertencente a este grupo pelos outros.
Ferreira (2000), citando Helms (1990), afirma que os afro-descendentes atravessam determinados estágios (Submissão, Impacto, Militância, Articulação), até formar uma identidade afirmada positivamente.
No estágio de submissão, há pelo afro-descendente uma idealização do “mundo branco”, visto como superior, enquanto desvaloriza o “mundo negro”, mantém-se afastado do grupo de referências, referenciando-se em valores brancos. Inclusive, porque aprende socialmente que suas referências não têm valor socialmente positivo.
A educação formal, estimulando estereótipos sociais, a submissão do afro-descendente aos valores brancos e introjetando valores negativos atribuídos socialmente a sua matriz africana, Silva (1995), favorece a fixação das pessoas no estágio de submissão. Além de passar uma visão distorcida da história, em que o povo africano é associado à passividade e desumanidade, sem heróis e modelos que sejam referências para as crianças afro-descendentes, que se identificam com o padrão branco-europeu associado ao que é belo, inteligente e positivo.
Outro exemplo singular para reforçar a depreciação da matriz africana é a valoração negativa das manifestações religiosas, consideradas como exóticas e primitivas até por autores que defendem uma visão crítica, dialética e processual da identidade como Ciampa (1996) que na sua tese de doutoramento se observa a depreciação da religião africana em uma das suas reflexões sobre a construção de identidade da personagem principal da sua história: "Era ainda a participante de sessões de macumba ou de espiritismo, só com outro vestuário e noutro cenário. Seu mundo ainda era o mundo mágico e primitivo dos feitiços e dos encostos". (pg. 106)
Nos espaços religiosos os membros da comunidade afro-descendente compartilham conhecimentos, sentimentos e emoções comuns, e fortalecem vínculos de aliança e estruturam as identidades Luz (1992), d’Adesky(1988).
Braga (1992), fala com propriedade: " O candomblé não representa tão somente um complexo de crenças alimentador do comportamento religioso de seus membros. Ele constitui, na essência, uma comunidade detentora de uma diversificada herança cultural africana que pela sua dinâmica interna é geradora de valores éticos e comportamentais que enriquecem, particularizam e imprimem sua marca no patrimônio cultural do país. E, diferentemente de outras formações religiosas, o candomblé é uma fonte permanente de gestação de valores e de promoção sociocultural que se sobrepõem à dimensão cultural-religiosa structu sensu, plasmando contornos da identidade do negro no Brasil".
Ao tomar consciência da discriminação, através de alguma experiência significativa, que negue as previsões da pessoa sobre os acontecimentos de seu mundo, ou como na maioria das vezes, pelo efeito cumulativo de uma sucessão de episódios vividos, é possível haver uma transformação desses processos e, em decorrência, o afro-descendente atingir o estágio de impacto.
Após este período, o afro-descendente passa a desenvolver um nova estrutura pessoal referenciada em valores étnicos das matrizes africanas, determinando o estágio de militância; em que há um apego obsessivo a símbolos da nova identidade em constituição, acompanhada por uma aversão e negação de valores brancos. Neste momento não há uma perspectiva positiva de suas matrizes étnicas, mas se o indivíduo se fixa neste estágio, mantém o mesmo padrão de subjetividade que visa transformar, ou seja uma estrutura pessoal que favorece o preconceito, nesse caso, contra a população de matrizes branco-européias.
O momento de militância é fundamental para recuperação e revalorização dos valores da história do afro-descendente, levando-o a revisar valores introjetados no período de socialização. Nesse momento fica mais explícito o ciclo de vida e morte, transfigurando uma não-identidade, em outra possibilidade de se ver e estar no mundo.
Para Erikson (1968), o dado étnico é algo que surpreende pois ao mesmo tempo em que põe o afro-descendente como uma sub pessoa - ou seja ele constitui ao longo da sua vida uma identidade negativa, ou seja, constitui-se como produto de uma matriz a ser negada, vinculada ao que lhe é considerado como nocivo, indesejado e inferior pela sociedade onde está inserido – a partir da re-elaboração dos fatos esse mesmo dado vincula fortemente o indivíduo a suas matrizes e possibilitam toda uma articulação de forma a avaliar de forma crítica, considerar aspectos conflitantes e a partir daí se constituir de forma positiva e afetiva consigo e com os suas matrizes.
“.....Descobri uma grande alegria. Descobri que sou negra. Eu sou negra! ...” Erikson (1968).
A partir da apresentação desse fato o autor conceitua essa descoberta e testemunho como totalismo, um reagrupamento interior de imagens, quase uma conversão negativa, por meio do qual os elementos de identidade negativa tornam-se totalmente dominantes, ao passo que os elementos anteriormente vistos como positivos acabam sendo totalmente excluídos. É o estágio de militância no seu apogeu.
Quando os valores associados a matrizes étnicas distintas não são considerados antagônicos e as matrizes africanas são positivamente afirmadas, o afro-descendente atinge um estágio de articulação, onde há predominância de atitudes positivas frente a alteridade. A retomada de sua história de forma crítica, desapaixonada permite ao indivíduo as pazes com sua matriz, seus antepassados e consigo próprio. Dessa forma ele está mais forte para interagir com o outro enquanto diferente, e se relacionar de forma articulada, saindo do status de inferior para o de igualdade, valorizando sua singularidade ou diferença de matriz, contribuindo para a diversidade que potencializa o encontro das pessoas.
“Pretendo contar no meu governo com negros e brancos, mulheres e homens, com gente do morro e do asfalto”. Essas foram as palavras de Benedita da Silva, primeira afro-descendente a assumir um governo de estado brasileiro à repórter Liana Melo (Revista Isto É, n.1697, 05/04/2002), demonstrando parcimônia e respeito frente às diferenças étnicas, que é uma das características mais evidentes do estágio de articulação.
Convém salientar que os estágios são momentos de vida em que preponderam certos dinamismos pessoas em relação aos outros, não implicando a ausência de particularidades dos processos descritos nos outros processos, se interpenetram num processo que se assemelha a um círculo contínuo, no qual circunstâncias idiossincráticas podem levar o indivíduo a retroceder na sua caminhada de construção de uma identidade positivamente afirmada. Não tendo a idéia de padrões fixos que se sucedem em uma seqüência linear, mas, sim, momentos em que o indivíduo expressa atitudes e concepções particulares desenvolvidas sobre si mesmo, sobre outras pessoas e sobre seu mundo, dentro do processo de desenvolvimento da identidade.
Auto-Estima
Ultimamente a palavra auto-estima vem sendo amplamente utilizada, na maioria das vezes de forma equivocada é verdade, mas cada vez mais as pessoas percebem a importância dessa instância. O verbo “estimar” vem do latim estimare , “avaliar”, cuja significação é dupla: a um só tempo, “determinar o valor de” e “ter uma opinião sobre”, assim sendo, segundo André (2003) auto-estima vem a ser a forma como valoramos a nós mesmos, a opinião que temos sobre nós mesmos. Uma proposição interessante é “ como a gente se vê, e se a gente gosta ou não do que vê”.
A auto-estima sustenta-se em três pilares: o amor a si mesmo, a visão de si mesmo, a autoconfiança. O equilíbrio desses três componentes é fundamental para a obtenção de uma auto-estima harmoniosa.
O amor a si mesmo é o elemento mais importante, uma vez que estimar implica em avaliar, amar não está sujeito a nenhuma condição: ama-se independentemente dos defeitos, limites e fracassos. E amar-se incondicionalmente não depende dos nossos desempenhos. Possibilita que consigamos resistir às adversidades e nos recompor após um fracasso.
A visão de si mesmo, vem a ser aquele olhar que se lança sobre si, essa avaliação fundamentada ou não, que se faz das próprias qualidades e dos próprios defeitos. Não se trata de apenas um auto-conhecimento; o importante não é a realidade dos fatos, mas a convicção que se tem de ser portados de qualidades ou defeitos, de potencialidades ou limitações.
A autoconfiança vem a ser o terceiro componente da auto-estima e normalmente é confundida como se fossem a mesma coisa - a autoconfiança aplica-se sobretudo aos nossos atos.Estar confiante é pensar que se é capaz de agir de maneira adequada nas situações importantes. Diferentemente dos dois primeiros componentes, a autoconfiança não é muito difícil de se identificar, basta estar próximo regularmente de uma pessoa, observar seu comportamento em determinadas situações, sejam elas desconhecidas, sob pressão, imprevistas, etc. A autoconfiança assim descrita parece ser a componente menos importante da auto-estima, na verdade uma resultante dos outros dois componentes.Em parte é verdade, mas seu papel é primordial uma vez que a auto-estima precisa de atos para manter-se ou desenvolver-se; pequenos êxitos no cotidiano são necessários ao nosso equilíbrio psicológico , assim como a alimentação e o oxigênio são necessários ao equilíbrio corporal.
Dois sentimentos são muito importantes na “alimentação” da auto-estima: o sentimento de ser amado e o sentimento de ser competente. E são justamente nesses dois sentimentos que os afro-descendentes vem sendo relegados a segundo plano, pois acima de tudo o preconceito e a discriminação racial tem como fim último a manutenção do status quo dos descendentes de europeu, ou simplesmente a manutenção do poder político e econômico na mão das pessoas de pele mais clara.
Referências Bibliográficas
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