terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Hitler Venceu

Hanka Nogueira


Como justificar o injustificável? Esse é o questionamento que me vem quando penso nos últimos ataques do Estado de Israel a Palestina. Lembro a minha infância e as noticias do conflito na tv. Meu pai assistia preocupado as noticias da chamada Terra Santa. Nessa época ouvi de alguém o seguinte comentário: Onde Jesus derramou o seu sangue nunca existira paz. Profecias a parte, a Historia do conflito envolve muito mais que supostas maldições religiosas. Basicamente estamos falando do controle do território. Esse mesmo, envolve os interesses estratégicos dos Estados Unidos no Oriente até as aspirações colonizadoras judaicas. O certo é que a cada noticia da continuidade do genocídio do povo palestino, o sentimento que cresce é de profunda tristeza e revolta. A superioridade militar israelense e o seu uso desproporcional e indiscriminado não escondem as intenções do governo de Israel. Dizimar os palestinos

Abraão, terra e água – Segundo o Velho Testamento judeus e palestinos seriam irmãos. Filhos de Abraão, mas, de mães diferentes. Da união de Abraão com Sara nasceu Isaac que seria o ancestral do povo judeu. Antes do nascimento de Isaac Abraão teve um filho com Hagar, uma escrava egípcia (egípcia, portanto negra), nascendo Ismael, ancestral do povo árabe. Sendo filho “ilegítimo” e após o nascimento de Isaac, Ismael e Hagar não mais encontraram lugar na casa de Abraão e saíram peregrinando pelo deserto. Essa historia bíblica aparentemente inofensiva serve como estopim para essa guerra fratricida. Não existe nada mais inflamável para se começar uma guerra do que a religião. E no oriente médio isso é levado ao extremo pelos ortodoxos de ambos os lados.

Em 1947, a ONU com as bênçãos dos Estados Unidos, aprova a partilha da palestina com a fundação de um Estado judeu e outro árabe. Mas, após um ano os judeus declaram independência e partem para a ofensiva atacando paises árabes que não concordaram com a “partilha”. A consequência foi que milhares de palestinos se tornaram refugiados. Vinte anos apos a primeira ofensiva judia, os assentamentos começaram e ser construídos se tomando áreas que antes eram destinadas aos palestinos. Dos assentamentos a construção do muro da vergonha, que segundo o Estado judaico é para segurança deles, demonstra o posicionamento intolerante e desrespeitoso com qualquer convenção de direitos humanos por parte do povo judeu, e deixando claro o objetivo de dizimar do povo palestino.

O muro corta as terras palestinas tomando áreas de produção agrícolas e garantindo para Israel importantes lençóis freáticos de água potável, desta forma, a economia do povo palestino, já combalida pelos anos de guerra e perseguição judaica inclusive encabeçando um boicote a Palestina, se torna inviável. Dentro dessa realidade o que pode fazer o povo palestino a não ser lançar mão de artifícios de guerra como: pau, pedra, estilingue e a sua mais moderna arma: os Qassans, que são foguete caseiro de pequeno poder de ação. . Tudo isso diante de uma super potencia que possui desde os mais modernos tanques e helicópteros de guerra até a bomba atômica. Daí aos palestinos virarem mulher e homem bomba é a demonstração clara do desespero e da falta de perspectiva de um povo inteiro.

Auschwitz, bantustões e guetos - O Estado de Israel não é exemplo para ninguém. Depois de 61 anos após a fundação, o mesmo povo perseguido durante a Segunda Guerra Mundial, persegue. Transformou a palestina em um enorme campo de concentração e o povo muçulmano que mora lá, em terroristas insanos, como afirma a mídia que em grande parte os judeus controlam. Homens, mulheres e crianças, em seres miseráveis sem perspectiva nem possibilidade de vida digna. Vitimas de um acerto estratégico da historia moderna, e que se apóiam em grupos radicais que facilmente tem o seu nome aliado ao medo e ao caos, e tentam em vão, pelo menos pelo viés da força, conseguir a liberdade de existir. A própria Israel, que esta muito longe do que imaginou Deus, quando falou ao patriarca Abraão da terra prometida que minava leite e mel. Foi transformada, por eles, em um país mais parecido com um condomínio fechado cheio de grades. Sem falar nos guetos. Sim, guetos, onde grupos étnicos menores são discriminados por não serem judeus puros (puros?) isso lembra alguma coisa? Pois é. Mas, a mídia não mostra o “espetáculo” do conflito por esse ângulo e sim pela visão do eterno judeu perseguido nos campos de concentração, vitimas da historia oficiosa e do drama do povo “escolhido” por Deus. Hitler venceu. E vive. Representado pelos ortodoxos e políticos do Estado judeu.

Hanka Nogueira

Luz e Força

sábado, 13 de dezembro de 2008

Dom Casmurro e o Homem Brasileiro

Hanka Nogueira

Sem querer fazer uma avaliação técnica da produção machadiana, resolvi escrever esse pequeno texto sobre as minhas impressões da obra que virou microsserie na TV: DOM CASMURRO (Capitu). Ainda que essa não seja a minha predileta do autor, mas, sem duvida, a mais comentada e lida. E é justamente sobre isso que escrevo. Sobre a repercussão da duvida de Bentinho, e a sua nada acidental aparência com o típico homem brasileiro: Machista, sexista e possessivo. Afinal de contas, o célebre escritor Machado de Assis com o seu historicismo sociológico, transcreveu para a sua obra a psicologia do Brasil escravista e patriarcal, ainda que, enganosamente o acusem de não ter tocado na questão escravista, os contos: Pai contra Mãe e Bondade dos Brancos (esse escrito seis dias após a abolição), denunciam o contrario. Penso que, o Brasil de hoje tem muitos resquícios da colônia que foi, e dessa época, mantem as suas relações de poder e hierarquia baseada em estigmas raciais e sociais. Na referida obra a questão da mulher e das relações de poder em que se baseavam os casamentos de outrora, nos são jogadas de forma bem sucinta pelo autor e o seu Dom Casmurro, que se mostra, ainda hoje, um típico e cultural homem brasileiro.

Hormônio e Cultura – ”Capitu era mais mulher do que eu era Homem”. Com essa afirmação a celebre personagem de Machado de Assis (Bentinho), resume a sua pequenez frente àquela mulher que ainda era uma menina. Sim, uma menina, mas, que também já era uma mulher. Sem querer ser redundante nem prolixo, mas ser mulher e menina é algo completamente normal para esse “bicho”. Quem nunca reparou na diferença existente entre um garoto de 14 anos e uma menina da mesma idade. Essa, um projeto da mulher que um dia será ou é. Aquele, um ser perdido entre os seus hormônios que mal consegue compreender o seu corpo, nem ao menos domar a sua voz que altera entre o grave e agudo a cada frase. Se pensam, que estou aqui querendo justificar de forma biológica o amadurecimento “prematuro” da mulher frente ao homem, acertou! É isso e assumo. Elas saem na frente, e se não avançam mais, é graças a cultura castradora que possuímos, fruto da nossa formação portuguesa judaico-cristã, onde a construção do sentimento de culpa como castigo, é um instrumento de controle e submissão. O mesmo castigo “divino” dado a Eva, a primeira a ser penalizada por ousar se libertar, recebeu a dor como maldição e foi a responsável por passá-la adiante. Isso nos é passado por homens e mulheres.

A Patologia do Ciúmes – Dom Casmurro (ele, Bentinho, assim chamado numa alusão a sisudo, carrancudo, triste), é uma obra no mínimo curiosa. Afinal, quem poderia imaginar que cem anos após o lançamento do livro, ainda hoje, se reúnam para saber se Capitu traiu ou não Bentinho (acreditem, existem grupos que se reúnem para isso). A psicologia das personagens principais: Bentinho, Capitu e Escobar, são debatidas e pensadas na maioria das vezes dentro de uma só ótica. Capitu traiu ou não Bentinho? Foi Capitu, ou não, a responsável pelo fim trágico do suposto triangulo? Teorias a parte, percebo que a obra nos oferece uma perspectiva rica em fatos que evidenciam a patologia do ciúme como pano de fundo, principal e motivadora de toda a trama. Bentinho é um fraco, submisso as vontades da mãe, inseguro, e que precisa de uma justificativa para se colocar em um plano superior a mulher que julga ser sua. Essa mesma doença é responsável pela maioria dos assassinatos cometidos por “homens” contra mulheres em nossa sociedade. Os “motivos” são vários, ou os mesmos: separação, rompimento de namoro, ou um basta nos maus tratos sofridos por parte do “companheiro”. A fantástica trama escrita em 1900, hoje, certamente renderia a Machado de Assis alguns elementos mais tristes. Ainda que as mulheres tenham avançado em suas conquistas (mulheres não negras principalmente), continuam a sofrer com o machismo e sentimento de posse por parte de alguns homens desequilibrados. Elas, buscam a realização profissional, liberdade e o exercício da sua completude natural de mãe. Eles, o exercício do poder pela posse e submissão do outro por meio da força. As mulheres querem ser justas. Eles querem ser juizes e ao mesmo tempo algozes.


Hanka Nogueira


Luz e Força

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

O PODER É NEGRO (com trocadilho, por favor)

Hanka Nogueira


Brown - Reservei-me o direito de escrever sobre a eleição do Obama depois da poeira assentar. Obama-mania a parte, em meio a tantos textos uma coisa me chamou a atenção: O foco demasiadamente simplista dos artigos e das matérias ditas jornalísticas, onde a questão da cor da pele do presidente é colocada sobre todas as outras. A impressão passada foi que a questão black/white norte-americana foi suplantada para o mundo. O próprio Obama preferiu correr as léguas do perrengue, (Jessé Jackson já tinha provado do gosto amargo da questão quando pré-candidato democrata em 1984 e 1988) Ele mesmo, o Obama, Se disse mulato. Sim, mulato. Claro que a palavra usada não foi essa e sim marrom, ele lembrou a todos ser filho de uma branca com um negro, e por desconhecimento do termo mulato ficou com o brown mesmo.

A primeira vez em que ouvir falar em Obama foi durante as eleições de 2000, na época o vice-presidente norte americano Al Gore, era o então candidato dos democratas para concorrer a vaga na Casa Branca. Durante a campanha de Gore em Seattle o então senador de IIIinois subiu ao palco em meio ao frisson encabeçado por afro militantes de peso: Spike Lee, Oprah Winfrey e Jesse Jackson, na ocasião um jornalista entrevistou Spike Lee que afirmou: Ele vai ser o futuro presidente dos Estados Unidos. Fora a empolgação dos afro militantes, o que me chamou a atenção foi a figura do Barack Obama. A figura esguia era sedutora, elegante e mesmo que eu não entenda nada em inglês, reparei que tinha uma retórica que empolgava a platéia em sua maioria composta por brancos. A imagem ficou guardada.

Bufa republicana - Muito se escreve sobre a eleição do presidente, mas, a maioria não foca o que realmente importa nesse momento de crise mundial encabeçada pelo Tio Sam. O exercício do poder. E se tratando de presidente norte americano esse deveria ser o maior foco e preocupação. Não há como negar que do ponto de vista simbólico a eleição de Obama é de uma força sem precedente, mas, também não podemos esquecer da sua necessidade de “salvar” a economia do país e de manter a sua colocação de mandante no mundo, principalmente depois da passagem desastrosa da bucha ou bufa republicana, como preferir, pela Casa Branca nos últimos oito anos.

Há quem diga que a eleição de obama é fruto das Políticas de Ações Afirmativas implementada nos Estados Unidos desde a década de 60. Extremamente exagerada essa afirmação. Mesmo após 40 anos de ações afirmativas existem mais afro-estadunidenses nas penitenciarias que nas universidades. A própria historia do Obama descarta essa idéia. Ele me parece mais um “imigrante legal” (filho de uma americana branca com um queniano, nascido no estado do Havaí, morando na islâmica Indonésia até os 10 anos, voltando aos 11 para os Estados Unidos, criado numa família branca classe media), que um afro estadunidense típico como a sua mulher. Essa sim, militante e fruto das ações afirmativas norte-americanas.

Bling-bling - Quanto ao poder dos afro-estadunidenses 12,8 % da população, portanto, a menor minoria entre as minorias, exercem uma maior influencia cultural que política, principalmente fora do país. Afinal, a cultura mundial pop é fruto da arte negra norte-americana. Essa influencia vem desde o jazz, blue, rock, passando pelo fenômeno Michael Jackson (esse com Triler transformou o pensamento de Andy Warhol em realidade: a cultura pop em um produto real, consumista, descartável, global). Até o movimento hip hop, que já se perdeu faz tempo, afinal de contas, o estilo bling-bling (possuir carrões, diamantes, iates, jatinhos, mulheres, tudo no plural mesmo), faz parte do american way or life das estrelas de rap e seus seguidores pelo mundo. Exibir faustosamente suas jóias, usar notas de cem dólares para acender charutos Cohiba, enquanto atiram as de menor valor na cara das mulheres, como se as mesmas fossem pedaços de carne, demonstra definitivamente, que o protesto do gueto virou um produto do capitalismo predatório norte americano.

O cara tem sorte - Ainda que a sua história e até o seu nome não ajudasse (Barack Hussein Obama II), em um país que possui uma sociedade racialista e belicista como a americana, ele chegou lá. Em parte pelo seu potencial intelectual e a sua capacidade de sedução. Mas, não podemos negar o sentimento de insatisfação da maioria do povo norte-americano com a política republicana atual. Até a sua chegada ao Senado de IIIinois, a historia política de Obama foi marcada por “trapalhadas” republicanas e democratas: em 2004, concorreu nas primarias com o outro candidato democrata Blair Hull, esse caiu fora após escândalo de violência domestica que o envolvia. Após ser escolhido pelos democratas concorreu com o então candidato republicano Jack Ryan, durante a campanha Ryan foi implicado por causa de um escândalo sexual (foi acusado de levar a sua mulher a um clube de sexo), aí já viu, caiu fora também, Obama torna-se Senador. De 2004 para 2008 foi um pulo. Não foi a cor do presidente que deflagrou o processo de escolha e sim a fragilidade do país frente a outras nações emergentes (entenda-se China), e o fortalecimento econômico e geopolítico da Europa, entre outras questões não raciais. Sem falar nos vinte dias anteriores ao pleito, quando explodiu a crise econômica norte americana enterrando de vez a candidatura do Jonh McCain, levando Bush a sair da Casa Branca (e da Historia), por onde entrou. Pela porta dos fundos.

Para alem da cor - O filosofo Foucault em A Vontade de Saber. Diz: “Onde existe poder, existe resistência”. As questões a serem debatidas e trabalhadas pelo Obama não somente em relação a política interna de seu pais, mas ,principalmente externa, é que vão talvez aproxima-lo do patamar de um Mandela ( Esse, o maior estadista vivo da História) Questões referente a: aliados estratégicos, imposição econômica, meio ambiente e protecionismo, vão dominar sua agenda. A tirar pela parte de sua recém anunciada equipe de governo, parece que não ficara muito longe das velhas praticas imperialistas, o que demonstra que independe da cor da pele a mudança a ser feita, e sim, o exercício do poder por parte de quem o possui. Esse sim, o ponto a ser pensado e debatido muito antes de deseja-lo, seja por negros, brancos ou mulatos. Mas, contudo, continuo a comemorar a eleição do Obama e pretendo faze-lo por muito mais tempo, em parte só depende dele, afinal de contas, como o Luther King eu também tenho um sonho.


Hanka Nogueira


Luz e Força

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Capoeira é na Roda e na Vida

por Jéssica Brandão e Taiana Laiz

Do alto, mestre Bimba contempla o reconhecimento que tanto esperou na sociedade baiana. Tombada como patrimônio imaterial pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (Ipac) no mês de julho de 2008, o título concedido pela instituição reconhece o ofício de mestre e professor de capoeira que não são formados em faculdades e universidades. “A capoeira e o capoeirista hoje, é um ser multifacetado. Temos desde o mestre velho analfabeto, o mestre doutor de universidade, até ao mestre honores causa em universidade estrangeira”, explica o professor de história e capoeirista do grupo Palmares Hanka Nogueira.
Segundo a Liga Baiana de Capoeira, os constantes problemas ocorridos entre mestres de capoeira e os Conselhos Regionais de Educação Física foi o principal fator que levou ao tombamento da arte. Os conselhos não admitiam que mestres sem escolarização formal ensinassem a arte.

A valorização da capoeira através do tombamento do Ipac auxilia no desenvolvimento social, cultural e esportivo, criando um espaço de inserção de jovens carentes em projetos educacionais, é o que declara Nogueira: “Salvador, por ser a cidade com os piores índices sociais do país precisa de incentivo a práticas que visem a socialização que já não temos nas ruas. Perdemos as ruas para a violência, ninguém se sente mais seguro em lugar algum da cidade”.

O reconhecimento social da capoeira como patrimônio cultural e histórico da humanidade representa uma importante conquista na história de lutas dos negros. Com os mais de 500 grupos presentes em toda a Bahia, a capoeira tem alcançado territórios estrangeiros e quebrado preconceitos antes nunca imaginados. “A capoeira já está no mundo todo, o que precisa é ser mais valorizada, principalmente aqui no Brasil. Por que a capoeira lá fora é valorizada, mais aqui dentro, principalmente os mestres mais antigos não tão tendo esse valor”, afirma Jackson Valentim, 25 anos, professor de capoeira do grupo Camugerê.

É dia de roda - A prática da capoeira é desenvolvida em diversos lugares, dentro e fora do Brasil. Com o seu reconhecimento nacional, muitos mestres e professores esperam o incentivo do governo federal para o financiamento de eventos, projetos sociais e centros de pesquisas que envolvam a capoeira. “Eu acho que agora que o governo valorizou ainda mais a capoeira, ele vai estar dando uma melhor assistência”, declara Márcio Nascimento, 31 anos, professor de capoeira e integrante do grupo Gueto Capoeira.

Nascimento acredita na possibilidade de mudanças, “o governo vai dar uma força ao estudante capoeirista e aos adolescentes que estão desempregados. Vai haver mais emprego e uma visibilidade maior, engrandecendo cada vez mais a capoeira”. E Nogueira na valorização, “o tombamento da capoeira serve para dar à capoeira a importância que sempre teve do ponto de vista social, da sua riqueza cultural e esportiva”.
Considerada um esporte acessível, que disciplina, instrui e garante uma diversão barata em família, “a prática da capoeira por se desenvolver sempre em grupo, através de exercícios lúdicos e coletivos, é ainda uma oportunidade barata, e muitas das vezes, gratuita de diversão que se tem em bairros pobres da cidade”, afirma Nogueira.

“Capoeira é na roda e na vida”, lembra Nogueira recitando os ensinamentos que trouxe o mestre Nô do grupo Palmares. A capoeira hoje, deixou de ser marginalizada e faz parte do cotidiano das manifestações culturais do país.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Salvador, Eleições 2008

A ultima eleição municipal de salvador deixou uma pergunta no ar. O que pensa o eleitorado? O que procuram ou querem? No entanto, a vitória de Leo Kret deixa claro o nível de insatisfação e desprezo pela política na cidade. Falo de Salvador, por ser morador de tão problemática capital.

Um travesti, dançarina de pagode e apresentadora de tv nas horas vagas, despontou como grande vencedora nas eleições municipais de 2008. Algo surpreendente para uma primeira candidatura (12.861votos) Quem votou nela? O que espera o eleitor da futura vereadora? São muitas as questões, se é que alguém esta preocupado com isso. O que tenho ouvido nas ruas me deixa curioso, expressões como: bem pouco que ela ganhou; adorei que ela ganhou; se é pra manguear é isso aí. Frases como essas evidenciam o grau de insatisfação da população e um sentimento de vingança e revolta contido nesse voto, sem falar no eleitorado alienado. Certo que tal sentimento não contribui em nada para melhorar a situação atual, mas, o que ta posto esta posto.

O vereador Leo Kret não é aceito pelo movimento gay organizado como representante da categoria, o que é de estranhar, já que é uma figura conhecida nas passeatas gays e faz questão de ser chamada de mulher. Ou seja, levanta a bandeira do movimento. Talvez os interesses dos gays organizados sejam outros. O movimento gay já tem o seu representante (esse não conseguiu se eleger pela segunda vez recebendo apenas 2655 votos), mas o tem como único e legitimo representante da causa, não um homossexual da periferia da cidade que é chamado pelo povo de fechação do Brasil. Afinal de contas, essas representações querem representar quem?

Os “representantes”, todos sem procuração assinada, de segmentos variados tentaram emplacar as suas lideranças fatiando o eleitorado. Gays, negros, evangélicos, adeptos do candomblé, policiais, aposentados e outros. Todos possuem uma coisa em comum: Querem representar a cidade a partir de reivindicações de minorias. Algumas nem são minorias, porem, são tratadas como tal. Pensadas estrategicamente como filão. A quem diga que isso faz parte da democracia. Para mim uma pratica velha e não condizente com as reais necessidades da população. Edvaldo Brito, vice do agora candidato João Henrique, é um dos maiores advogados tributaristas do país, já foi subsecretario e secretario da Bahia, chegando a ser prefeito também (na época apoiado pelo movimento negro). Mas, com tudo isso o movimento negro não o reconhece como representante da população negra. Mas, ele é negro ou não é?

O papel do vereador para a população a muitos perdeu o seu significado real. Fruto da cultura coronelista ainda atuante no eleitorado brasileiro. Cabe ao vereador, expor os problemas da comunidade e buscar providências junto aos órgãos competentes. Mas não é só isso. Cabe-lhe também a função de fiscalizar as contas do Poder Executivo Municipal, os atos do Prefeito, denunciando o que estiver ilegal ou imoral à população e aos órgãos competentes. Portanto, o vereador é o fiscal do dinheiro público. E não um “amigo” que serve para fazer favores a pessoas ou grupos, asfaltar ruas e distribuir cestas básicas. Para saber mais acesse o link da Lei Orgânica do Município de Salvador: http://www.cms.ba.gov.br/lom/lom.pdf,

Mas, enquanto a população é “impedida” de saber o real papel dos gestores públicos, e se rebela ou atira no próprio pé a cada eleição, a vereadora Leo Kret vai cantando seu hino para militantes e não militantes:

A, você vai ter que me aturar. E, eu sou quase uma mulher. I, vocês vão ter que me engolir. O, eu sou Leo Kret a melhor. U, eu gosto de dar....

Hanka Nogueira

Luz e Força






terça-feira, 23 de setembro de 2008

Negros ainda trabalham mais que brancos


Brasília, 11/09/2008

Negros trabalham mais, mas ganham menos
Jornada superior a 44 horas semanais é mais freqüente entre pretos e partos do que entre brancos; mas estes têm rendimento maior.

Embora trabalhem mais, os negros têm rendimento quase 50% menor que o dos trabalhadores brancos. Um relatório organizado pela CEPAL (Comissão Econômica para América Latina e Caribe), pela OIT (Organização Internacional do Trabalho) e pelo PNUD aponta que, em 2006, 35% dos pretos e pardos tinham jornada superior às 44 horas semanais estabelecidas na Constituição, mas recebiam, em média, 46,8% menos que os brancos — grupo em que 34,4% tinham jornadas excessivas.

A desigualdade persistiu em todo o período analisado — 1992 a 2006. A diferença de rendimentos reais diminuiu, mas "continua extremamente elevada: se, em 1992, os negros recebiam em média exatamente a metade do que recebiam os brancos, 14 anos depois eles passaram a receber 53,2%", afirma o estudo, lançado na segunda-feira e intitulado Emprego, Desenvolvimento Humano e Trabalho Decente – A experiência brasileira recente. No mesmo intervalo, a jornada excessiva de trabalho caiu para ambos os grupo (estava em torno de 40% em 1992, contra 35% em 2006), mas sempre foi mais elevada para os trabalhadores negros — embora a diferença tenha caído 0,8 ponto percentual no período. Tanto os números de rendimento real quanto o da jornada abrangem apenas trabalhadores de 16 anos ou mais de idade.

O fosso entre brancos e negros diminuiu menos entre a população mais escolarizada. Em 1992, os homens pretos ou pardos com 15 anos ou mais de estudos recebiam 70,4% do rendimento dos homens brancos na mesma faixa de estudos; em 2006, a diferença havia caído apenas 2,1 pontos percentuais, para 72,9%. Na outra ponta da pirâmide, entre os que têm instrução, a desigualdade recuou mais: 12,6 pontos percentuais, de 61,3%, em 1992, para 73,9%, no ano retrasado.

Tendência semelhante foi registrada entre as mulheres negras. Na parcela sem instrução, o rendimento delas em comparação ao dos homens brancos subiu de 40,5% para 54,9%. Entre os que têm 15 anos ou mais de estudos, o movimento foi mais lento — elas ganhavam 41,4% do que ganhavam os homens brancos com mesma educação, apenas 3,5 pontos percentuais a mais que 14 anos antes.

"Esses dados demonstram que as desigualdades de rendimentos entre homens e mulheres e negros e brancos não podem de forma alguma ser explicadas apenas pela diferença de escolaridade. Ao contrário, e tal como já mostrado em muitos outros estudos, quanto maior os níveis de escolaridade, maior a desigualdade", aponta o estudo.

A taxa de desemprego também é desfavorável para negros e mulheres. Apesar de um pequeno recuo em 2006, ela vinha crescendo em todas as faixas. De 1992 a 2006, o indicador aumentou 19,3% para homens brancos, 20,6% para homens negros, 34,8% para mulheres brancas e 45,7% entre mulheres negras. “Analisando a população economicamente ativa sob um prisma racial, observa-se que não só o desemprego foi maior entre os negros durante todo o período, como a diferença em relação aos brancos se ampliou justamente após 1999, quando o mercado de trabalho como um todo se tornou mais favorável”, observa o relatório.

Informalidade

Além de amargarem maior taxa de desemprego, negros e mulheres são mais afetados pela informalidade. A desigualdade, porém, também recuou entre 1992 e 2006 — a taxa diminuiu entre negros e aumentou um pouco entre brancos. "Ao contrário do que ocorre em relação às taxas de participação e desemprego, na informalidade as desigualdades raciais têm influência mais acentuada que as de gênero. Em todos os casos, as negras, justamente por expressarem a condensação das desigualdades de gênero e cor/raça, encontram-se na pior situação", diz o texto.

"Em 1992, a taxa média de informalidade para trabalhadores de 16 anos ou mais era de 53,4%. O indicador era significativamente inferior entre homens brancos (41,7%) e expressivamente superior entre negros (59,8%) e, sobretudo, negras (68,7 %). Entre os dois extremos (homens brancos e mulheres negras), havia uma diferença de 27 pontos percentuais." Em 2006, as taxas de informalidade para negros e mulheres haviam caído, aumentando apenas para os homens brancos. "Apesar disso, as diferenças nas taxas de informalidade ainda são muito acentuadas: 42,8% para os homens brancos, 47,4% para as mulheres brancas, 57,1% para os homens negros e 62,7% para as mulheres negras. A diferença entre homens brancos e mulheres negras caiu, mas ainda é extremamente elevada: cerca de 20 pontos percentuais", destaca o estudo.

Os efeitos de mais negros estarem trabalhando sem as garantias legais se reflete nas taxas de ocupados que contribuem para a Previdência Social. "Em 2006, a cobertura previdenciária beneficiava 58,6% dos homens brancos, mas apenas 40,6% das mulheres negras. Essa diferença era ainda maior em 1992: a taxa de cobertura dos homens brancos era praticamente a mesma (57,9%), mas a das mulheres negras era de 31,6%. A taxa de cobertura das mulheres brancas cresceu 7,2 pontos percentuais no período e se aproximou da dos homens brancos em 2006 (56,2%). Já a taxa dos negros era, em 2006, de 44,1% (14,5 pontos percentuais inferior à dos homens brancos, portanto), enquanto em 1992 era de apenas 39,3%", diz o relatório.

quinta-feira, 31 de julho de 2008

Um dos casos. Maumau - O Bandido miseravão

Censura, porque não?

Cena 1 – O jornalista entrevista um homicida que acaba de ser preso e que sorrir alegremente por estar diante das câmeras de tv. Após algumas afirmações feitas pelo “profissional” da comunicação a exemplo de: Ele é o mizeravão! O terror da cidade! O jornalista no termino da entrevista manda que o mesmo fale o jingle da marca de cerveja que patrocina o programa, ele o faz, e arremata: Eu só tomo dessa e bem gelada.

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Cena 2 – O ancora do programa “jornalístico” não cansa de anunciar entre um intervalo e outro: Menor é drogada e abusada sexualmente por quatro homens, depois tem imagens colocadas na Internet. Vamos mostrar as cenas chocantes não mudem de canal.

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Cena 3 – Só no final do programa, distorcendo-se as imagens, as cenas da menor são mostradas, mas, continuam claras no seu sentido e intenção. O apresentador diz, que por se tratar de uma menor não podem mostrar o rosto dela na entrevista. Logo após, entrevista a mãe, que mostra o rosto, filma a fachada da casa da mesma, e vai a escola entrevistar colegas de sala da vitima. Como se não bastasse faz a reconstituição do crime utilizando atores para mostrar o que não foi para a Internet. As cenas são repetidas durante toda a semana.


O jornalismo mudou. Desde os tempos em que o primeiro jornalista imprimiu a sua marca com a célebre frase que demonstrava a sua suposta indignação: “Isso é uma vergonha” observamos uma escalada sem limite e muitas vezes sem ética, dos programas jornalísticos. Não se trata de simplesmente noticiar o ocorrido, e sim, explorar ao máximo as possibilidades midiáticas dele. Atualmente, as emissoras de tv descobriram uma nova forma de exploração, alguns chamam de Freak Show ou Show dos Horrores. Na Bahia, dois programas dominam esse segmento no horário nobre, disputando ponto a ponto a atenção da população: Se Liga Bocão e Que Venha o Povo. Ambos se auto-intitulam a voz do povo, se dizem socialmente responsáveis, e que estão prestando um serviço de extrema importância para a população. As praticas são as mesmas, explorar ao máximo a miséria do fato e para isso utilizam as mais vis práticas midiáticas, tudo para seduzir o público. Definitivamente, as lagrimas só já não bastam.

O por que do fenômeno de audiência desses programas é algo complexo e digno de ser estudado a fundo. Famílias e grupos se amontoam em frente a tv para assistir a entrevistas de marginais que são expostos, ora por desconhecimento do seu direito de não veiculação da imagem, ora por vontade própria, afinal de contas, o crime seduz e oferece status em uma sociedade que vivencia varias formas de propagação da cultura da violência, não somente por meio da tv, mas também, por meio das lan houses que pupulam nas periferias com jogos extremamente violentos como Grand Theft Auto (GTA) e Swat.

A satisfação de quem ver e de quem quer ser visto é algo explícito e perturbador. A violência assim, atinge todos os níveis possíveis da naturalização, banalização e estimulo ao ato. Não interessa a condição da vitima ou do autor. A promoção do espetáculo é o que conta, nessa verdadeira apologia ao crime construída a partir de um modelo publicitário de conquista da audiência em detrimento da real informação. O que dizer de mais de duzentos policiais se mobilizando para levar um traficante ao aeroporto para ser transferido a outro Estado, como vimos recentemente na cidade? a cobertura foi feita até por helicóptero onde dava para ver de cima a carreata de carros que acompanhava a “personalidade”. Os policiais são figurantes, e sabem disso, exercem bem o seu papel, assim como o Estado omisso. A população por usa vez é refém da sua própria confusão de discernimento entre o real e o virtual, entre a vida e a dramaturgia das personagens da “novela”, a medida em que vivencia todos os dramas na carne já anestesiada pela falta de perspectiva. Não existe diálogo entre os meios de comunicação e a população. O exercício da cidadania e escolha são vistos como valores perdidos no conceito de massa, que só precisa ser entretida por um instrumento que a muito já deixou de ser apenas um eletrodoméstico, afinal, no Brasil existe mais televisores do que geladeira.

Falar em censura nesse país soa como uma grande heresia, algo que vai de encontro ao Estado Democrático de Direito, A Liberdade de Expressão e nos remete aos porões da ditadura. É o que dizem. Sempre desconfiei da “democracia” que vivemos. Nunca entendi esse modelo aliado a concentração de renda, miséria, desigualdade de tratamento por parte da justiça, manipulação do espaço público, alistamento militar e voto forçado. A democracia que vivemos é algo que entendo como valor para a elite que detém o conhecimento e as formas de produzi-lo, pois possuem mecanismos para isso. A educação de qualidade, o acesso a tecnologias de ponta, que sem duvida, não é a condição de acessar a Internet de alguma lan house, são formas negadas a grande massa alienada, fruto de uma sociedade que se acostumou com privilégios e favores.

Pensar o controle do que é publicizado tendo como centro órgãos reguladores, não falo da figura do censor publico dos tempos da ditadura, e sim de organismos que fizessem parte Ministério Público, Sociedade Civil e órgãos sérios da imprensa, seria dar a população a possibilidade de decidir sobre uma questão fundamental nos dias atuais, que é o controle do que é veiculado pelos meios de comunicação, via consultas publicas onde se colocassem claramente os pontos a serem discutidos e a importância de tais medidas. A sugestão da faixa etária feita pelo Governo aos programas de tv já se mostrou ineficiente, já que parte do princípio do horário veiculado e não da complexidade dos fatos exibidos. Os fatos aqui descritos no inicio do texto se desenrolaram entre 12:00 e 14:00 horas, onde a classificação é livre, ou melhor, a sugestão de exibição é livre.

Imaginar que a livre escolha do que se deva ou não assistir, sem ao menos oferecer opções e informação, deva partir da “consciência” da população que a tempos foi subtraída do seu papel de protagonista, é um equivoco, já que hoje existe uma quase padronização dos programas de tv e da forma de se fazer “jornalismo”, onde o que é priorizado é o índice da audiência. Alguns programas chegam a comemorar no ar quando o índice sobe, e para isso procuram usar o máximo de sensacionalismo nas matérias e imagens exibidas. Esse poder de independência não esta na capacidade de mudar de canal, não esta no simples ato de um dedo, e sim na informação e na construção de uma cidadania de direitos partindo da educação e da informação crítica, e aí sim, realmente livre e democrática.



Hanka Nogueira

Luz e Força

terça-feira, 29 de julho de 2008

Introdução: "Da Cor do Bronze Novo"

"Uma feita o Sol cobrira os três manos de uma escaminha de suor e Macunaíma se lembrou de tomar banho. Porém no rio era impossível por causa das piranhas vorazes que de quando em quando na luta pra pegar um naco da irmã espedaçada pulavam aos cachos para fora d"água metro e mais. Então Macunaíma enxergou numa lapa bem no meio do rio uma cova cheia d"água. E a cova era que nem a marca dum pé de gigante. Abicaram. O herói depois de muitos gritos por causa do frio da água entrou na cova e se lavou inteirinho. Mas a água era encantada porque aquele buraco na lapa era marca do pezão de Sumé, do tempo que andava pregando o Evangelho de Jesus pra indiada brasileira. Quando o herói saiu do banho estava branco louro de olhos azuizinhos, água lavara o pretume dele [à]. Nem bem Jiguê percebeu o milagre, se atirou na marca do pezão de Sumé. Porém a água já estava muito suja do pretume do herói e por mais que Jiguê esfregasse feito maluco atirando água para todos os lados só conseguia ficar da cor do bronze novo [à]. Maanape então é que foi se lavar, mas Jiguê esborrifara toda a água encantada para fora da cova. Tinha só um bocado lá no fundo e Maanape conseguiu molhar só a palma dos pés e das mãos. Por isso ficou negro bem filho dos Tapanhumas. Só que as palmas das mãos e dos pés dele são vermelhas por terem se limpado na água santa [à]. E estava lindíssimo no Sol da lapa os três manos um louro, um vermelho, outro negro, de pé bem erguidos e nus [à]."1

Nos idos de 1928, Mário de Andrade recontou, à sua maneira, a famosa fábula das três raças. Depois de terem sido tão iguais, os irmãos acabavam ganhando as cores das "gentes locais", por conta de um milagre da natureza ou de um atributo de não se sabe quem. Nesse caso, porém, a narrativa surgia em meio a uma série de outras aventuras e desventuras de Macunaíma, esse herói "sem nenhum caráter". De toda maneira, no conjunto do livro, destacava-se uma intenção de incorporar culturas não-letradas indígenas, caipiras, sertanejos, negros, mulatos, cafuzos e brancos, cujo resultado era menos uma análise das raças e mais uma síntese das culturas locais. Afinal, a fórmula "herói de nossa gente" veio substituir expressão anterior "herói de nossa raça", numa clara demonstração de como o romance dialogava com o pensamento social de sua época e buscava se contrapor à versão pessimista, de finais do século 19, que entendeu a miscigenação como uma espécie de mácula nacional.

Mas, se essa é uma história famosa e dileta, não deixa de ser, também, uma "versão". Uma versão que remete a outra estrutura maior, que, de alguma maneira, vem repensando a nação a partir da raça, às vezes nomeada em função da cor. Pode-se afirmar, sem medo de errar, que, na maioria das vezes em que oficialmente se falou sobre esse país, o critério racial foi acionado: ora como elogio, ora como demérito e vergonha. No entanto, assim como se sabe que o nacionalismo é, no limite, uma invenção, é preciso deixar claro, também, que não se trata de um discurso meramente aleatório.

O fato é que não se manipula no vazio e que, apesar de muitas vezes pragmáticos, os rituais, ícones e representações nacionais dificilmente se impõem de forma apenas exterior. Entender as marcas simbólicas do poder político significa perceber como é possível descobrir intencionalidade na cultura política, mas também atentar para o fortalecimento de um imaginário nacional, que buscou raízes nos ditos populares e em certa maneira particular de entender a cor e a raça. Estamos diante, portanto, de representações que, além de estarem ancoradas na estrutura socioeconômica mais imediata, são partilhadas coletivamente, mesmo que reapropriadas segundo padrões nem sempre idênticos. E mais: nesse processo, a composição mestiçada da população sempre pareceu chamar atenção.

É por isso mesmo que este livro procurará acompanhar a trajetória do conceito "raça" em nossa história particular, sem abrir mão de pensar o momento presente e seus desafios.2 No primeiro capítulo, "Raça Como Negociação", o leitor será convidado a viajar pelos diferentes caminhos que o termo percorreu entre nós: desde meados do século 16 até os anos 1930 e depois até o contexto atual, o conceito ganhou visões variadas, que oscilaram entre as leituras mais românticas e as teorias detratoras. Na seqüência "Falando de História: Ser Peça, Ser Coisa", vai-se procurar analisar o impacto da escravidão brasileira na estrutura local e o perfil basicamente conservador do movimento abolicionista brasileiro.

Não se pretende, porém, limitar o problema ao passado. Ao contrário, a forma atual e particular que a questão racial assume aqui será o tema de dois outros capítulos. Em "Frágil Democracia: na Dança dos Números",interpretaremos os dados da demografia censitária, que vêm comprovando a existência de um apartheid social velado no país. Já em "Nomes, Cores e Confusão", a idéia é lidar com cenários paralelos: a "raça social" (que faz com que as pessoas "embranqueçam ou empreteçam", conforme a situação social e mesmo econômica) e o uso escorregadio da cor, que transforma raça em efeito passageiro, ou tema para a exclusiva nomeação. Para complicar ainda mais, no capítulo 5, "Raça Como Outro", estaremos diante dessa modalidade original de preconceito; um preconceito alterativo que localiza no próximo, ou no vizinho ao lado, a discriminação.

Concluímos com "Fechando ou Abrindo Essa História", já que "ninguém é de ferro". Questões desse tipo são melhores para pensar do que para resolver: vale mais incomodar e provocar do que estar à cata de receitas fáceis e prontas, ou poções mágicas que anunciem o final derradeiro do problema. No que se refere ao tema racial, estamos bem longe de um "E viveram felizes para sempre".

1 Mário de Andrade, p. 37-8.2 Este texto guarda uma formulação original, mas representa, em alguns pontos delimitados, uma nova investida na discussão iniciada no ensaio de minha autoria "Nem Preto, Nem Branco, Muito Pelo Contrário", publicado no livro História da Vida Privada no Brasil, v. 4 (São Paulo: Companhia das Letras, 1998).
"Folha Explica - Racismo no Brasil"

segunda-feira, 14 de julho de 2008

A Declaração Universal dos Direitos Humanos

A Declaração Universal dos Direitos Humanos é um dos documentos básicos das Nações Unidas e foi assinada em 1948. Nela, são enumerados os direitos que todos os seres humanos possuem

Preâmbulo

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo,

Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os todos gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do ser humano comum,

Considerando ser essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo império da lei, para que o ser humano não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão,

Considerando ser essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações,

Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta da ONU, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor do ser humano e na igualdade de direitos entre homens e mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla,

Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a promover, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos e liberdades humanas fundamentais e a observância desses direitos e liberdades,

Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso,

agora portanto,

A Assembléia Geral proclama a presente Declaração Universal dos Direitos Humanos

como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universal e efetiva, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros, quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição.

Artigo I.
Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.

Artigo II.
1. Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.
2. Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania.

Artigo III.
Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.

Artigo IV.
Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas.

Artigo V.
Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.

Artigo VI.
Todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei.

Artigo VII.
Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.

Artigo VIII.
Todo ser humano tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei.

Artigo IX.
Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado.

Artigo X.
Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.

Artigo XI.
1. Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.
2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Também não será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso.

Artigo XII.
Ninguém será sujeito à interferência em sua vida privada, em sua família, em seu lar ou em sua correspondência, nem a ataque à sua honra e reputação. Todo ser humano tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.

Artigo XIII.
1. Todo ser humano tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado.
2. Todo ser humano tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar.

Artigo XIV.
1. Todo ser humano, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países.
2. Este direito não pode ser invocado em caso de perseguição legitimamente motivada por crimes de direito comum ou por atos contrários aos objetivos e princípios das Nações Unidas.

Artigo XV.
1. Todo homem tem direito a uma nacionalidade.
2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade.

Artigo XVI.
1. Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução.
2. O casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimento dos nubentes.
3. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado.

Artigo XVII.
1. Todo ser humano tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros.
2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.

Artigo XVIII.
Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, em público ou em particular.

Artigo XIX.
Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.

Artigo XX.
1. Todo ser humano tem direito à liberdade de reunião e associação pacífica.
2. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação.

Artigo XXI.
1. Todo ser humano tem o direito de fazer parte no governo de seu país diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos.
2. Todo ser humano tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país.
3. A vontade do povo será a base da autoridade do governo; esta vontade será expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto.

Artigo XXII.
Todo ser humano, como membro da sociedade, tem direito à segurança social, à realização pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade.

Artigo XXIII.
1. Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.
2. Todo ser humano, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho.
3. Todo ser humano que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social.
4. Todo ser humano tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar para proteção de seus interesses.

Artigo XXIV.
Todo ser humano tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas.

Artigo XXV.
1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.
2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio gozarão da mesma proteção social.

Artigo XXVI.
1. Todo ser humano tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito.
2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.
3. Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos.

Artigo XXVII.
1. Todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir das artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios.
2. Todo ser humano tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica literária ou artística da qual seja autor.

Artigo XXVIII.
Todo ser humano tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados.

Artigo XXIX.
1. Todo ser humano tem deveres para com a comunidade, na qual o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível.
2. No exercício de seus direitos e liberdades, todo ser humano estará sujeito apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática.
3. Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma, ser exercidos contrariamente aos objetivos e princípios das Nações Unidas.

Artigo XXX.
Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui estabelecidos.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Identidade e Auto-estima: Uma visão para Afro-descendentes

Identidade e Auto-estima: Uma visão para Afro-descendentes
Por: Valter da Mata

A identidade é a questão central por ser compreendida como um constructo que envolve o indivíduo, portanto algo pessoal, escolhido e produto de sua própria autoria; contextual por desenrolar-se no contexto onde o indivíduo atua e interage portanto tem um aspecto cultural; social por necessitar da validação desse constructo pelo outro como pertinente e histórico uma vez que as ocorrências de construção e transformação se dão num espaço e ao longo de uma vida.
A identidade é vista de uma forma concreta, objetiva mas, a maioria do processo se dá na subjetividade do autor e dos atores que possibilitam a articulação do individual com o universal. Ou seja, os modelos se apresentam e atuam no coletivo, mas o processamento é resultante do processo de cada um.
Segundo Erikson (1976), a formação da identidade é algo processual, histórico, referenciado. Ele ressalta a importância do modo como se dão as conquistas do indivíduo e como são resolvidos os conflitos. Isso envolve de forma singular as figuras parentais e outros modelos de referência para o indivíduo e mais tarde o contexto em que está inserido.
As figuras parentais reforçam, rejeitam ou se omitem perante as identificações demonstradas pelo indivíduo e, conforme essa correlação de fatores adicionadas ao processo de socialização, o indivíduo construirá um modelo de identidade que permitirá que ele atue da maneira que se sinta mais coerente com as crenças aprendidas durante todo o percurso da formação da sua identidade.
“A criança em crescimento vê a cada passo uma sensação vitalizante da realidade a participar da percepção de que sua forma individual de dominar a experiência é uma variante bem sucedida de uma identidade grupal e está em harmonia com seu espaço-tempo e com o seu plano de vida. Ou seja a identidade será autêntica se validada pelo seu grupo de referência através do reconhecimento como realização com significado na cultura.” (Erikson, 1976)
Ferreira (2000) percebe identidade como um processo dinâmico em torno do qual o indivíduo se referencia, constrói a si e a seu mundo e desenvolve um sentido de autoria. Assim ela possui uma direção, um propósito e obedece a uma política pré determinada. Caminha na direção que aponta uma melhor adaptação do indivíduo de forma que ele possa entender e viver o melhor possível no seu mundo dentro da sua própria concepção. O propósito é adquirir uma estabilidade emocional, relacional e política uma vez que precisa estar em conformidade com as exigências do seu meio e está em jogo toda uma relação de poder e força por trás de cada concepção, valor e organização da sociedade da qual ele é produto e produz.
Em Ciampa (1996) a identidade vista como movimento, correlação de forças e morte-vida, ou seja algo que se atualiza o tempo inteiro portanto, trazendo em si a idéia de ciclo, onde se apreende, se mantém, se descobre outras possibilidades, se avalia, se complementa, se abandona algo, se transforma, se integra. Esse processo não é linear e nem ocorre da mesma forma com todos os indivíduos, todo processo pessoal, social e histórico tem que ser levado em conta.
A identidade étnica e seus estágios
Para entendermos a identidade do afro-descendente, precisamos inicialmente conceituar identidade étnica. Tratando-se de Brasil, ressaltamos notadamente as características fenotípicas, particularmente a cor da pele. d'Adesky, salienta como Abou (1985) define grupo étnico como "indivíduos que possuem, a seus próprios olhos e diante dos outros, uma identidade distinta, enraizada na consciência de uma história ou de uma origem comum. Esse fato de consciência tem por base os dados objetivos de uma língua, de uma raça, ou de uma religião comum, às vezes de um território, instituições ou traços culturais comuns, embora possam faltar algumas dessas características". Assim sendo a identidade ética, vem a ser o auto-reconhecimento de pertença a um grupo de origem, ser reconhecido como pertencente a este grupo pelos outros.
Ferreira (2000), citando Helms (1990), afirma que os afro-descendentes atravessam determinados estágios (Submissão, Impacto, Militância, Articulação), até formar uma identidade afirmada positivamente.
No estágio de submissão, há pelo afro-descendente uma idealização do “mundo branco”, visto como superior, enquanto desvaloriza o “mundo negro”, mantém-se afastado do grupo de referências, referenciando-se em valores brancos. Inclusive, porque aprende socialmente que suas referências não têm valor socialmente positivo.
A educação formal, estimulando estereótipos sociais, a submissão do afro-descendente aos valores brancos e introjetando valores negativos atribuídos socialmente a sua matriz africana, Silva (1995), favorece a fixação das pessoas no estágio de submissão. Além de passar uma visão distorcida da história, em que o povo africano é associado à passividade e desumanidade, sem heróis e modelos que sejam referências para as crianças afro-descendentes, que se identificam com o padrão branco-europeu associado ao que é belo, inteligente e positivo.
Outro exemplo singular para reforçar a depreciação da matriz africana é a valoração negativa das manifestações religiosas, consideradas como exóticas e primitivas até por autores que defendem uma visão crítica, dialética e processual da identidade como Ciampa (1996) que na sua tese de doutoramento se observa a depreciação da religião africana em uma das suas reflexões sobre a construção de identidade da personagem principal da sua história: "Era ainda a participante de sessões de macumba ou de espiritismo, só com outro vestuário e noutro cenário. Seu mundo ainda era o mundo mágico e primitivo dos feitiços e dos encostos". (pg. 106)
Nos espaços religiosos os membros da comunidade afro-descendente compartilham conhecimentos, sentimentos e emoções comuns, e fortalecem vínculos de aliança e estruturam as identidades Luz (1992), d’Adesky(1988).
Braga (1992), fala com propriedade: " O candomblé não representa tão somente um complexo de crenças alimentador do comportamento religioso de seus membros. Ele constitui, na essência, uma comunidade detentora de uma diversificada herança cultural africana que pela sua dinâmica interna é geradora de valores éticos e comportamentais que enriquecem, particularizam e imprimem sua marca no patrimônio cultural do país. E, diferentemente de outras formações religiosas, o candomblé é uma fonte permanente de gestação de valores e de promoção sociocultural que se sobrepõem à dimensão cultural-religiosa structu sensu, plasmando contornos da identidade do negro no Brasil".
Ao tomar consciência da discriminação, através de alguma experiência significativa, que negue as previsões da pessoa sobre os acontecimentos de seu mundo, ou como na maioria das vezes, pelo efeito cumulativo de uma sucessão de episódios vividos, é possível haver uma transformação desses processos e, em decorrência, o afro-descendente atingir o estágio de impacto.
Após este período, o afro-descendente passa a desenvolver um nova estrutura pessoal referenciada em valores étnicos das matrizes africanas, determinando o estágio de militância; em que há um apego obsessivo a símbolos da nova identidade em constituição, acompanhada por uma aversão e negação de valores brancos. Neste momento não há uma perspectiva positiva de suas matrizes étnicas, mas se o indivíduo se fixa neste estágio, mantém o mesmo padrão de subjetividade que visa transformar, ou seja uma estrutura pessoal que favorece o preconceito, nesse caso, contra a população de matrizes branco-européias.
O momento de militância é fundamental para recuperação e revalorização dos valores da história do afro-descendente, levando-o a revisar valores introjetados no período de socialização. Nesse momento fica mais explícito o ciclo de vida e morte, transfigurando uma não-identidade, em outra possibilidade de se ver e estar no mundo.
Para Erikson (1968), o dado étnico é algo que surpreende pois ao mesmo tempo em que põe o afro-descendente como uma sub pessoa - ou seja ele constitui ao longo da sua vida uma identidade negativa, ou seja, constitui-se como produto de uma matriz a ser negada, vinculada ao que lhe é considerado como nocivo, indesejado e inferior pela sociedade onde está inserido – a partir da re-elaboração dos fatos esse mesmo dado vincula fortemente o indivíduo a suas matrizes e possibilitam toda uma articulação de forma a avaliar de forma crítica, considerar aspectos conflitantes e a partir daí se constituir de forma positiva e afetiva consigo e com os suas matrizes.
“.....Descobri uma grande alegria. Descobri que sou negra. Eu sou negra! ...” Erikson (1968).
A partir da apresentação desse fato o autor conceitua essa descoberta e testemunho como totalismo, um reagrupamento interior de imagens, quase uma conversão negativa, por meio do qual os elementos de identidade negativa tornam-se totalmente dominantes, ao passo que os elementos anteriormente vistos como positivos acabam sendo totalmente excluídos. É o estágio de militância no seu apogeu.
Quando os valores associados a matrizes étnicas distintas não são considerados antagônicos e as matrizes africanas são positivamente afirmadas, o afro-descendente atinge um estágio de articulação, onde há predominância de atitudes positivas frente a alteridade. A retomada de sua história de forma crítica, desapaixonada permite ao indivíduo as pazes com sua matriz, seus antepassados e consigo próprio. Dessa forma ele está mais forte para interagir com o outro enquanto diferente, e se relacionar de forma articulada, saindo do status de inferior para o de igualdade, valorizando sua singularidade ou diferença de matriz, contribuindo para a diversidade que potencializa o encontro das pessoas.
“Pretendo contar no meu governo com negros e brancos, mulheres e homens, com gente do morro e do asfalto”. Essas foram as palavras de Benedita da Silva, primeira afro-descendente a assumir um governo de estado brasileiro à repórter Liana Melo (Revista Isto É, n.1697, 05/04/2002), demonstrando parcimônia e respeito frente às diferenças étnicas, que é uma das características mais evidentes do estágio de articulação.
Convém salientar que os estágios são momentos de vida em que preponderam certos dinamismos pessoas em relação aos outros, não implicando a ausência de particularidades dos processos descritos nos outros processos, se interpenetram num processo que se assemelha a um círculo contínuo, no qual circunstâncias idiossincráticas podem levar o indivíduo a retroceder na sua caminhada de construção de uma identidade positivamente afirmada. Não tendo a idéia de padrões fixos que se sucedem em uma seqüência linear, mas, sim, momentos em que o indivíduo expressa atitudes e concepções particulares desenvolvidas sobre si mesmo, sobre outras pessoas e sobre seu mundo, dentro do processo de desenvolvimento da identidade.
Auto-Estima
Ultimamente a palavra auto-estima vem sendo amplamente utilizada, na maioria das vezes de forma equivocada é verdade, mas cada vez mais as pessoas percebem a importância dessa instância. O verbo “estimar” vem do latim estimare , “avaliar”, cuja significação é dupla: a um só tempo, “determinar o valor de” e “ter uma opinião sobre”, assim sendo, segundo André (2003) auto-estima vem a ser a forma como valoramos a nós mesmos, a opinião que temos sobre nós mesmos. Uma proposição interessante é “ como a gente se vê, e se a gente gosta ou não do que vê”.
A auto-estima sustenta-se em três pilares: o amor a si mesmo, a visão de si mesmo, a autoconfiança. O equilíbrio desses três componentes é fundamental para a obtenção de uma auto-estima harmoniosa.
O amor a si mesmo é o elemento mais importante, uma vez que estimar implica em avaliar, amar não está sujeito a nenhuma condição: ama-se independentemente dos defeitos, limites e fracassos. E amar-se incondicionalmente não depende dos nossos desempenhos. Possibilita que consigamos resistir às adversidades e nos recompor após um fracasso.
A visão de si mesmo, vem a ser aquele olhar que se lança sobre si, essa avaliação fundamentada ou não, que se faz das próprias qualidades e dos próprios defeitos. Não se trata de apenas um auto-conhecimento; o importante não é a realidade dos fatos, mas a convicção que se tem de ser portados de qualidades ou defeitos, de potencialidades ou limitações.
A autoconfiança vem a ser o terceiro componente da auto-estima e normalmente é confundida como se fossem a mesma coisa - a autoconfiança aplica-se sobretudo aos nossos atos.Estar confiante é pensar que se é capaz de agir de maneira adequada nas situações importantes. Diferentemente dos dois primeiros componentes, a autoconfiança não é muito difícil de se identificar, basta estar próximo regularmente de uma pessoa, observar seu comportamento em determinadas situações, sejam elas desconhecidas, sob pressão, imprevistas, etc. A autoconfiança assim descrita parece ser a componente menos importante da auto-estima, na verdade uma resultante dos outros dois componentes.Em parte é verdade, mas seu papel é primordial uma vez que a auto-estima precisa de atos para manter-se ou desenvolver-se; pequenos êxitos no cotidiano são necessários ao nosso equilíbrio psicológico , assim como a alimentação e o oxigênio são necessários ao equilíbrio corporal.
Dois sentimentos são muito importantes na “alimentação” da auto-estima: o sentimento de ser amado e o sentimento de ser competente. E são justamente nesses dois sentimentos que os afro-descendentes vem sendo relegados a segundo plano, pois acima de tudo o preconceito e a discriminação racial tem como fim último a manutenção do status quo dos descendentes de europeu, ou simplesmente a manutenção do poder político e econômico na mão das pessoas de pele mais clara.
Referências Bibliográficas
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sexta-feira, 4 de julho de 2008

Em julgamento, a igualdade


Dois ativistas do movimento em favor das cotas contam como se articula a luta para que o STF as ratifique, sustentam que apenas uma minoria rejeita as políticas de inclusão racial e afirmam que está em jogo o próprio direito da sociedade a ir além da democracia institucional
Bruno Cava
(29/06/2008)

Dando continuidade ao último texto publicado nesta coluna - "A função racial da universidade" -, apresento o ponto de vista de dois militantes pró-ações afirmativas. Ambos estiveram em Brasília, no começo de maio, promovendo o "Manifesto em defesa da justiça e da constitucionalidade das cotas e do Prouni"
O manifesto defende as políticas de promoção de igualdade racial. Por isso, se contrapõe à articulação conservadora que pretende impedir a adoção de cotas raciais nas universidades. Um dos lances mais importantes desta articulação foi sustentar, em 2007, que a garantia de uma parcela das vagas para estudantes não-brancos é inconstitucional. Isso foi feito por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn), incluída em abril na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF). Se aceita pelo Supremo, a ADIN poderia liquidar as políticas afirmativas, hoje adotadas em 64 universidades federais e estaduais.

O documento pró-cotas mobilizou a esquerda brasileira e rapidamente multiplicou as assinaturas. Contou com apoios dos mais diversos setores: o arquiteto Oscar Niemeyer, o sub-procurador-geral da República Juarez Tavares, o rapper MV Bill, o reitor da UERJ Ricardo Vieiralves, o líder do MST João Pedro Stédile, os cineastas Nelson Pereira dos Santos e Jorge Furtado, os atores Lázaro Ramos e Taís Araújo, entre outros. A UNE e a UBES também subscreveram o manifesto. Os dois entrevistados, tão próximos dessa mobilização, são: Alexandre do Nascimento, coordenador do Movimento Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC) e Alexandre Mendes, defensor público do estado do Rio de Janeiro (Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro).
Le Monde Diplomatique: Vocês foram a Brasília, junto com a militância dos movimentos negros, entregando o manifesto em favor das políticas de cotas raciais no dia 13 de maio. Como foi essa mobilização?

Alexandre do Nascimento: Fiz parte do grupo que redigiu, organizou e mobilizou as adesões ao manifesto. A tônica é a defesa da constitucionalidade e a importância das cotas como política de redução da desigualdade e democratização das instituições do ensino superior. O manifesto enfatiza as lutas que produziram o atual debate e as políticas de ação afirmativa no Brasil e polemiza com os argumentos contrários às cotas.

"A mobilização mostrou que o documento contrário às cotas expressa uma pequena parcela da sociedade brasileira, que tem dificuldade de reconhecer o caráter democrático das políticas de inclusão racial"
Alexandre Mendes: Fiquei bastante impressionado com a amplitude e a força da mobilização em favor das cotas raciais. O manifesto foi preparado rapidamente e, em apenas 24 horas, reuniu cerca de 800 assinaturas (atualmente, são milhares). Estudantes, professores, artistas, intelectuais, organizações, pré-vestibulares populares e movimentos sociais de todo o Brasil enviaram imediatamente apoio à política de cotas para negros. Fiquei muito satisfeito com o apoio vindo do mundo jurídico. A Defensoria Pública do Rio de Janeiro, por meio do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos, foi a primeira instituição jurídica a subscrever o documento. Depois, conseguimos apoio de juristas como Fábio Konder Comparato e o Sub-Procurador-Geral da República, professor. Juarez Tavares. A ante-sala do gabinete do ministro Gilmar Mendes ficou repleta de pessoas que compareceram ao STF para a entrega do texto. Nesse sentido, a mobilização em torno da defesa das cotas raciais demonstrou que o "manifesto dos 113" [contrários às cotas] expressa somente uma pequena parcela da sociedade brasileira, que tem dificuldade de reconhecer o avanço democrático representado pela política de inclusão racial vigente.

Como foi a reunião com o ministro Joaquim Barbosa?

Nascimento: Foi uma preliminar. O ministro é favorável às cotas e defende sua constitucionalidade. Conversamos sobre o clima e a dinâmica do STF, e entregamos o manifesto. Ele foi cauteloso e não revelou quando pretende liberar o processo, pois pediu vistas. Nossa reunião principal foi com o presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, ao qual entregamos oficialmente o manifesto. Todos os ministros receberam uma cópia.
Mendes: A história de vida do ministro Joaquim Barbosa é um notório exemplo da existência real de pesadas barreiras, dificuldades e interdições vividas pelo negro, no Brasil e no mundo, quando busca realizar seus desejos e aspirações. Em várias entrevistas divulgadas na época de sua posse, ele relatou ter vivido um brutal sentimento de solidão e isolamento por não pertencer ao "ambiente branco", em especial quando estudou direito na Europa (Universidade de Sorbonne). Por outro lado, no caminho que percorreu para chegar de encarregado de limpeza do TRE-DF a ministro do Supremo, conheceu, também, as ricas possibilidades geradas pelo acesso ao conhecimento (e de sua produção), aliado às múltiplas e diversificadas vivências que sua condição racial e social proporcionou. Em minha opinião, esse conjunto de fatores pode explicar a defesa das cotas raciais, sustentada por ele no livro Ação afirmativa e princípio constitucional na igualdade: O Direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA, lançado em 2001. Em Brasília, mesmo não tendo adiantado nenhuma posição, em razão de seu status de magistrado, a expectativa é que seu voto seja não somente favorável, mas muito bem fundamentado.

Passados quase seis anos de políticas afirmativas concretas na educação, qual a avaliação do movimento negro?
Nascimento: A avaliação é positiva. As cotas já são uma realidade no Brasil, mas ainda não estão consolidadas nacionalmente como política pública. A maioria das iniciativas de cotas são das próprias universidades. As exceções são o estado do Rio de Janeiro, que possui uma lei estadual instituindo cotas no ensino superior, e o Prouni, que possui cotas para negros e indígenas. A posição do movimento negro é que uma lei federal é importante. As cotas estão ajudando a produzir uma classe média negra. E, mais importante, estão ajudando a abrir as instituições de ensino superior, historicamente criadas para as elites e que, ao longo do tempo, vêm produzindo e reproduzindo as desigualdades, inclusive raciais. Outro aspecto importante é que as cotas ajudam a sociedade a ver os negros de outra forma, na medida em que houver mais profissionais de nível superior negros e negras.
"Mais que constitucionais, as cotas são constituintes. Têm a ver com a possibilidade de um regime político definido pelas mobilizações sociais, que produzem e garantem valores como liberdade e igualdade"
As cotas raciais são constitucionais? Justas? Democráticas? Racistas?

Mendes: As cotas raciais são mais do que constitucionais, elas são constituintes. O que está em jogo é algo que vai além da democracia institucional. Tem a ver com a possibilidade de admitirmos um regime político definido pelas mobilizações sociais, que produzem e garantem concretamente valores como liberdade e igualdade. As cotas raciais não foram produzidas pela dinâmica jurídico-constitucional, mas pela atividade intensa e cotidiana dos pré-vestibulares para negros e pobres que exigiram novas formas de acesso ao ensino superior. Baruch de Espinosa, bem antes do que se convencionou chamar "constitucionalismo", já afirmava, no século 17, que o poder político só poderia existir enquanto permanecesse atual o "sujeito instituinte", denominado por ele de multidão (multitudo). A democracia é justamente o regime político em que o problema da fundação deveria permanecer sempre atual. As cotas raciais são justas e democráticas exatamente por expressarem o desejo de uma nova política de acesso à universidade, que possa mobilizar os desejos e a esperança de milhares de brasileiros negros e provenientes, em geral, dos bairros pobres das cidades. Mas é claro que os argumentos jurídico-constitucionais são importantes e devem ser levantados. O princípio da igualdade material tem sido apresentado como o fundamento para as diversas ações afirmativas de inclusão. Além disso, temos como objetivo constitucional da República brasileira a construção de uma sociedade livre e solidária, a erradicação da pobreza e das desigualdades sociais.
O manifesto, de forma oportuna, também cita o artigo 4º da Convenção Internacional sobre Todas as Formas de Discriminação Racial (decreto 65.819/1969), que oferece respaldo às ações afirmativas. Todavia, percebo que um artigo importante sobre o tratamento constitucional ao ensino e à educação ficou um pouco esquecido na defesa das cotas raciais. Trata-se do inciso que estabelece o princípio da garantia do padrão de qualidade. Está se comprovando ano a ano que o acesso desses jovens na universidade incrementa a qualidade de ensino, seja pelo desempenho dos novos alunos, seja pela experiência de novas vivências, reflexões, ações e questionamentos que aparecem com a democratização do aprendizado. É preciso perceber que o ensino só possui qualidade se for democrático, múltiplo e diversificado. Posso colocar o exemplo da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), que depois a adoção de cotas está muito mais aberta, criativa e produtiva. Não é por acaso que a UERJ esteve presente no manifesto através da assinatura do reitor da universidade, do vice-diretor, do centro acadêmico do direito e de vários professores. Devido à melhora no acesso universitário, a UERJ hoje oferece uma experiência universitária de maior qualidade. Da mesma forma, está se tornando evidente que a melhor forma de combater o racismo consiste no aprofundamento da democracia. Tenho certeza que as cotas impulsionam esse movimento constituinte.

Qual o impacto de uma decisão desfavorável no STF? Como isso seria encarado pelo movimento?
Nascimento: Seria um enorme retrocesso. O movimento negro, o primeiro a lutar por escola pública de qualidade para todos, passou um século batalhando para que a sociedade compreendesse o papel negativo do racismo. Hoje, a sociedade é, na sua maioria, favorável às cotas. Uma decisão negativa obrigaria a luta a se voltar para o Congresso, pois seria necessária uma emenda constitucional. Mas acreditamos que o STF fará prevalecer a sua responsabilidade pública, a sua responsabilidade com a consolidação da República (res publica, coisa pública) e com a Constituição, pois as cotas são constitucionais. Além disso, hoje são mais de meio milhão estudantes cujo direito de estudar foi garantido pelo Prouni e pelas políticas de cotas.
Independentemente da decisão, o movimento negro continuará lutando por políticas que combatam o racismo e democratizem a sociedade.

Bruno Cava é colunista do Caderno Brasil de Le Monde Diplomatique.

terça-feira, 1 de julho de 2008



Cheguei aqui em Salvador há quatro dias. Vim para filmar Ó Paí Ó, que agora está tendo um desdobramento, virando série para ser exibida na TV. Só no domingo consegui ir visitar uma parte da minha família que mora na Federação. Ao chegar lá, às 19 horas, percebi que a rua estava vazia. Imaginei ser o vazio normal e soturno dos fins de domingo, que nos prepara para começar a semana. Ao chegar em casa, alguns dos meus parentes e vizinhos estavam lá, assistindo televisão. Começaram a me contar as novidades. Lá para as tantas perguntei por que eles estavam em casa e fui surpreendido como que por um soco, com a informação de que era por causa do "toque de recolher".
Não entendi. Não consegui crer que, nas ruas onde eu fui criado e podia brincar, até pelo menos 23 horas com tranqüilidade, as pessoas não tenham mais o direito de pôr o rosto na janela de suas casas a uma hora daquelas. Não consigo crer que vários assassinatos de policiais, traficantes e inocentes estejam se tornando uma constante.
Conflito armado! Aqui, eu abro parênteses para dizer que, mesmo morando no Rio, ouvi falar de alguns casos de violência ocorridos nesta região de Salvador. As histórias me mobilizaram e entristeceram, mas pensei que eram casos isolados como os que acontecem esporadicamente em todas as grandes capitais. Infelizmente, ouvi a frase que mais me amedrontava: "Isto aqui está parecendo alguns lugares do Rio".
Moro no Rio de Janeiro há oito anos. Gosto muito, sou bem tratado. Reconheço todas as suas qualidades, geográficas, de oportunidades, de luta das pessoas para resolver os problemas que a história carioca gerou.
Mas, nunca me acostumei com a idéia de que, em algumas localidades, havia toque de recolher, e a idéia de que o tráfico de drogas e conflitos armados causavam tantos danos a várias vidas, estejam elas envolvidas ou não com o crime.
Recentemente, fiz uma novela que, da maneira que o autor pôde ou quis, discutia a vida numa comunidade. De forma não explícita, percebíamos códigos que uma comunidade como aquela criava para sobreviver
A equipe técnica do programa que dirijo e apresento (E spelho, Canal Brasil) é toda composta por ex-alunos formados pela Central Única das Favelas (Cufa) – organização que busca dar uma outra alternativa para os jovens dessas comunidades, seja profissionalmente, seja no campo do referencial. No primeiro momento, incorporei esses jovens ao programa como uma atitude política. Depois, isso virou uma necessidade profissional: são competentes e agarraram a oportunidade com unhas e dentes. Ou seja, o tema não está longe da minha vida.
Mas não há como chegar e ver o Garcia, a Federação, o Calabar e tantos outros bairros passando por essa situação, e não ter um sentimento como o que estou tendo agora.

Então, como primeiro passo, escrevo.
Escrevo para falar com meus conterrâneos. Escrevo para falar aos envolvidos nessa situação; sejam aqueles que estão envolvidos no tráfico e matam seu irmão; sejam os policiais que estão enfrentando essa situação, que é uma bomba-relógio; sejam os que perderam seus entes queridos. E, principalmente, para falar às autoridades e a todo aquele que não sabe o que está acontecendo, ou aquele que, como eu, sabe dessas situações e, de alguma maneira, está protegido com a falsa distância. Falsa, porque essa situação está muito próxima de nós, por mais que não percebamos tudo isso mais claramente.
Agora me vêm a mente várias perguntas: o que eu posso fazer? O que eu vou fazer? No que se transforma o personagem que estou fazendo no Ó Paí Ó? Qual o sentido da arte? Como o Estado vai intervir nisso? O que nós faremos para acabar com esse absurdo? Por que o morador da mesma cidade, uma cidade cheia de questões para serem resolvidas, mata o outro desse jeito? Qual a alternativa que vamos dar às nossas crianças e adolescentes? Pergunto, também, o que as autoridades farão para conter essa situação? Esta pequena reflexão é um desabafo, esperançoso de que nosso esforço coletivo e emergencial vá mudar esse quadro.
Tenho esperança. Na conversa com a minha família e vizinhos, o tom em que eles falavam ainda não continha o conforto e a acomodação. Eu vi desconforto, medo e, principalmente, inadequação à realidade como esta.
Não merecemos isso.

Ainda tenho esperança de ver, nesta mesma rua que passei minha infância, outras crianças brincando – e tendo outra alternativa que não o medo e a ilusão de que o seu futuro não pode ser melhor. O Futuro pode ser melhor, sim! P.S.: ao sair da casa da minha família, uma viatura passou por mim em alta velocidade, os policiais com armas em punho.
Bem no lugar onde antes eu me escondia para não ser encontrado, pois estava brincando com meus amigos...

*Ator baiano

Fonte: Publicado no 1º caderno do Jornal A Tarde, em 17/06/2008

domingo, 29 de junho de 2008

Entrevista com Mangabeira Unger (Ministro de Assuntos Estratégicos)











10/03/2008 - 15:38)
Roberto Mangabeira Unger


Por Roberto Müller Filho e Jorge Luiz de Souza, de Brasília


Desafios - O que está faltando ao desenvolvimento brasileiro?
Mangabeira - Fui convocado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva para ajudar a formular e a debater um novo rumo de desenvolvimento para o país. O Brasil hoje está à busca de um modelo de desenvolvimento baseado em ampliação de oportunidades econômicas e educativas, e em participação popular. Nosso país tradicionalmente crescia dentro dos setores favorecidos e internacionalizados em sua economia. Esses setores geravam riqueza e uma parte dessa riqueza era usada para financiar políticas sociais. Agora, a nação quer mais do que isso. Quer transformar a ampliação de oportunidades tanto econômicas quanto educativas e engajamento cívico nos próprios motores do desenvolvimento, e desta maneira consolidar um vínculo íntimo, orgânico, entre o social e o econômico.

Desafios - Na prática, como é o seu trabalho?
Mangabeira - Meu trabalho nasceria morto se fosse apenas um projeto conceitual a respeito do futuro. O longo prazo tem de ser tratado a curto prazo. Não há nenhum projeto de longo prazo que valha a pena ser pensado que não tenha implicações imediatas para o que se faz aqui e agora. Por essa razão, eu orientei o meu trabalho para a definição e a construção de um elenco de iniciativas que antecipem e encarnem essa alternativa nacional que o país procura. E que sejam como que as primeiras prestações do nosso futuro.Com isso, imagino contribuir a uma dinâmica transformadora, ancorada nessas iniciativas concretas. Esse método não nos exime da responsabilidade de formular também uma estratégia abrangente e de longo prazo, econômica, social, cultural e política.Mas essa estratégia só viverá se estiver ancorada em ações concretas. Portanto, eu estou trabalhando simultaneamente nesses dois planos.

Desafios - Poderia resumir o seu projeto?
Mangabeira - As iniciativas estão em quatro grandes áreas: oportunidade econômica, oportunidade educativa, Amazônia e Defesa. Em oportunidade econômica, são três as iniciativas principais, que eu estou desenvolvendo em colaboração com os diversos ministros. A primeira é uma política industrial e agrícola de inclusão. A nossa política industrial brasileira, tradicionalmente, está voltada mais para as empresas e oferece a essas grandes empresas, tipicamente, isenções tributárias e condições melhores de acesso ao crédito, até mesmo crédito subsidiado. Mas uma das características estruturais de nossa economia é a predominância absoluta nela de pequenas empresas,de empreendimentos emergentes e muito restritos no seu acesso ao crédito, à tecnologia, ao conhecimento, ao próprio mercado. Aí reside a maior força potencial de nossa economia. Instrumentalizar essa energia empreendedora emergente pode criar um dínamo de crescimento econômico socialmente includente. Esse projeto tem que comportar três elementos. Primeiro,o aconselhamento gerencial ou a formação prática de quadros. Em geral, no mundo essa é a parte mais difícil de avançar, mas no Brasil é a que mais avança, por causa do notável trabalho do Sebrae. Segundo, a ampliação do crédito ao produtor. Não podemos enriquecer só à base da popularização das oportunidades de consumo, com a expansão do crédito ao consumidor. A história mostra o oposto. O fundamental é a democratização do acesso às oportunidades da produção. Isto precede a massificação do consumo. E o terceiro elemento é a transferência de tecnologias avançadas para pequenas empresas e empreendimentos emergentes.

Desafios - Em que setores da economia isto se aplica?
Mangabeira - É um projeto que fica mais claro na agricultura do que na indústria. Estamos acostumados a imaginar a agricultura como exceção, mas ela é vanguarda. Não basta regular o mercado e compensar as desigualdades do mercado com políticas de transferência. É necessário reorganizar o mercado institucionalmente, para torná-lo mais includente nas suas oportunidades. Eu dou dois exemplos na história dos Estados Unidos, no século XIX, que são a agricultura e as finanças. Organizaram uma agricultura de padrão familiar e de concorrência cooperativa entre os fazendeiros e construíram a agricultura mais eficiente do mundo naquela época. E no setor financeiro destruíram os bancos nacionais e os substituíram pelo sistema de crédito mais descentralizado que havia existido no mundo até aquele momento. Quando fizeram isso, não estavam regulando a economia de mercado, mas reinventando e reorganizando a economia de mercado. E é isso que nós no Brasil queremos fazer, não repetindo o conteúdo deles, mas apreendendo o método.



O longo prazo tem de ser tratado a curto prazo.Não há projeto de longo prazo sem implicações imediatas.Por essa razão, definimos quatro iniciativas como as primeirasprestações do nosso futuro: oportunidades econômicas,oportunidades educativas, Amazônia e Defesa.



Desafios - Como seria utilizar esse método no Brasil de hoje?
Mangabeira - O coração do nosso sistema industrial montado no Sudeste do país no curso do século XX é aquele que os especialistas costumam chamar de fordismo. É a produção em grande escala de bens e serviços padronizados, com maquinaria rígida, mão-de-obra semiqualificada e relações de trabalho muito hierárquicas e especializadas. Esse é um fordismo já tardio, que vem sendo desmontado nas economias liderantes do mundo, em favor de formas mais flexíveis de produção,e que se mantém competitivo em economias como a nossa. Se não quisermos virar uma grande fazenda combinada com uma grande indústria maquiladora, temos que acelerar a passagem para além desse fordismo tardio e, com os setores mais atrasados da economia e com as pequenas empresas, passar diretamente do pré-fordismo para o pós-fordismo, sem a etapa intermediária do fordismo.
Desafios - Qual é a sua segunda iniciativa nas oportunidades econômicas?
Mangabeira - A transformação das relações entre o capital e o trabalho no Brasil. Não temos uma grande reconstrução institucional das relações entre o capital e o trabalho no Brasil desde Getúlio Vargas. Há dois pontos de partida: primeiro, a ameaça de nossa economia ficar imprensada entre as economias de produtividade alta e as de trabalho barato. Um dos maiores interesses nacionais é escapar dessa prensa pelo alto, e não por baixo, e pela escalada da produtividade, e não pelo aviltamento salarial. O outro ponto de partida é que o modelo institucional existente resguarda os interesses dos trabalhadores dos setores intensivos em capital, mas não resolve o problema dos outros. Não bastam os dois discursos que prevalecem: o da flexibilização, que os trabalhadores interpretam corretamente como eufemismo para descrever a corrosão dos direitos do trabalhador; e o discurso do direito adquirido, de manter como está, que é melhor do que o outro, mas não resolve o problema dos excluídos dos setores avançados da economia. Iniciei uma discussão intensa com os dirigentes das centrais sindicais sobre três grandes temas: primeiro, a informalidade - como resgatar os 60% dos trabalhadores brasileiros que estão nela hoje; segundo, a participação dos salários na renda nacional - como reverter a longa queda da participação; terceiro, a revisão do próprio regime sindical. Me anima acreditar que nós possamos construir não um consenso, mas uma convergência preponderante.
Desafios - E a terceira grande iniciativa econômica?
Mangabeira -A ampliação dos instrumentos jurídicos ou institucionais disponíveis ao Estado brasileiro para atuar na economia. Por exemplo, para estimular a invenção e a fabricação de tecnologia apropriada ao manejo sustentável de uma floresta tropical, já que a tecnologia disponível no mundo evoluiu toda ela para tratar de florestas temperadas, o Estado só tem dois modelos disponíveis. Um é produzir diretamente dentro do setor público, mas há a camisa-de-força das regras que incidem sobre o setor. Outro modelo é o de tentar induzir o investimento privado por meio de crédito subsidiado e do favor fiscal, com o risco de o Estado dar muito em troca de pouco e de o empresário capitalizar o lucro e socializar o risco. Para evitar isso é preciso ampliar os instrumentos disponíveis ao Estado. Exemplo: o Estado funda e capitaliza um empreendimento num regime de tramercado, com gestão profissional e independente, decompõe em etapas, e em cada uma procura, tão logo que possível, substituir-se por um agente privado. Enfim,atua como atuaria um venture capitalist. Não para suprimir a concorrência ou substituir o mercado, mas para radicalizar a concorrência e aprofundar o mercado.

Desafios - E sobre as oportunidades educativas?
Mangabeira - Também são três as iniciativas principais. A primeira é, com o ministro da Educação, a construção de uma rede de escolas médias federais, como importante componente técnico e profissional, acima do nível de projeto-piloto, mas muito aquém do universo total das matrículas. O objetivo dessa rede, nos seus desdobramentos finais, seria ocupar em torno de 10% das matrículas do universo de estudantes de ensino médio. E o projeto tem três alvos. O primeiro é consertar o elo mais fraco do nosso sistema escolar, que é o ensino médio. O segundo é usar a escola média federal como cunha, com uma mudança do paradigma pedagógico em todo o ensino brasileiro. Substituir o ensino informativo e enciclopédico por um ensino analítico e capacitador, que mobilize a informação só seletiva e subsidiariamente como meio para aquisição de capacitações analíticas. Portanto, o foco no fundamental, que é a análise verbal e a análise numérica, sem cair em modismos pedagógicos. O terceiro alvo é construir um novo modelo de relações entre o ensino analítico geral e o ensino de especializações técnicas ocupacionais. Não queremos aquele modelo tradicional, como existia na Alemanha, de ensino de ofícios rígidos.Não é prático e não é democrático agravar uma divisão entre o ensino generalista para as elites e o ensino especialista para as massas.

Desafios - Do que trata a segunda iniciativa de oportunidade educacional?
Mangabeira - De como reconciliar a gestão local das escolas dos estados e municípios com padrões nacionais de investimento e de qualidade. São necessários três instrumentos: um sistema nacional de avaliação e monitoramento, e nisso já avançamos muito; um mecanismo para redistribuir recursos e quadros de lugares mais ricos para lugares mais pobres, e nisso começamos a avançar com o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb); e no terceiro não avançamos nada ainda - é um procedimento para socorrer um sistema escolar local que,apesar de todos os esforços, tenha ficado abaixo do patamar mínimo tolerável de qualidade e de investimento.
Desafios - E a terceira iniciativa?
Mangabeira - É a inclusão digital, que eu estou trabalhando junto com o Ministério da Cultura e a Casa Civil. O projeto tem quatro componentes: construção de uma infovia nacional que aglomere os fragmentos de infovias que nós temos, com todos os seus elementos, do backbone, do backhole e da chamada "última milha", e trabalhe nisso junto com as empresas privadas; medidas destinadas a fortalecer as capacitações populares de acesso à rede, para que não seja prerrogativa de uma elite; estímulo à produção de conteúdos nacionais e populares; e uma estrutura de governança na internet que dê voz e vez à sociedade civil independente, fora do Estado, e não apenas aos governos ou às empresas. Portanto, é uma iniciativa também libertadora.

Desafios - O terceiro grande setor de ação do seu plano é a Amazônia...
Mangabeira - Que eu encaro como um grande laboratório nacional brasileiro, para ser vanguarda, não para ser retaguarda, um lugar onde o Brasil pode se reinventar. Rejeitamos duas idéias inaceitáveis e opostas: a de que a Amazônia é um santuário; ou a de que deve ser entregue às forças econômicas mais devastadoras, como a pecuária extensiva. Um ambientalismo sem projeto econômico é um ambientalismo inconseqüente, insufla uma atividade econômica desordenada que leva ao desmatamento. A Amazônia não é apenas um conjunto de árvores, é um grupo de pessoas. É preciso ter uma estratégia para a Amazônia já desmatada,onde se possa associar o Estado com os pequenos produtores, e outro projeto para a Amazônia com floresta em pé. A base de tudo é o zoneamento econômico e ecológico que contemple a solução dos problemas fundiários em toda a Amazônia e que assegure que a floresta em pé valha mais do que a floresta derrubada.Não basta, por exemplo, ter na Zona Franca de Manaus indústrias que oferecem empregos às pessoas. É preciso construir elos entre o complexo verde e o complexo industrial e urbano, indústrias que transformem os produtos da floresta e indústrias que produzam tecnologia apropriada ao manejo de uma floresta tropical.



Temos o compromisso de restabelecer a causa da Defesa noimaginário nacional como inseparável do desenvolvimento,permitindo a reorganização das Forças Armadas em tornode uma vanguarda tecnológica e operacional, baseadaem capacitações nacionais
Desafios - E quanto ao projeto da Defesa?
Mangabeira - Não há estratégia nacional de desenvolvimento sem estratégia nacional de Defesa. Nisso eu estou tramercado balhando muito de perto com o ministro Nelson Jobim e com as Forças Armadas. Os dois grandes temas que orientam nosso trabalho são: primeiro, a reorganização das Forças Armadas em torno de uma vanguarda tecnológica e operacional, baseada em capacitações nacionais; e, segundo, o compromisso de restabelecer a causa da Defesa no imaginário nacional como causa inseparável do desenvolvimento. Vou dar um exemplo: a reorganização da indústria de Defesa, em ambos os seus componentes, o privado e o estatal. No privado, uma das idéias é criar um regime jurídico regulatório e tributário especial que assegure continuidade nas compras públicas e resguarde as empresas privadas de Defesa de depender de um curtoprazismo mercantil. Em troca, o Estado brasileiro adquiriria um poder estratégico muito amplo sobre as empresas privadas de Defesa e dentro delas,além dos limites do poder regulador e a ser exercido por meios como o golden share. E, no componente estatal, uma inversão completa. Em vez de produzir o rudimentar e atuar no chão tecnológico, produzir no teto, na vanguarda, aquilo que não seja rentável a curto e a médio prazos para as empresas privadas, justamente por ser de vanguarda. Esta é a vocação do componente estatal.
Desafios - Qual é o alcance desse projeto?
Mangabeira - É necessário que o Brasil tenha um escudo. Neste mundo em que a intimidação ameaça tripudiar sobre a cultura, os meigos precisam andar armados. Nenhum país no mundo moderno, de dimensão comparável à nossa, é menos beligerante do que o Brasil. Mas esse pacifismo instintivo não nos exime da responsabilidade de construir um escudo de defesa. O foco do conflito ideológico no mundo todo está mudando. O velho conflito entre o estatismo e o privatismo, entre o Estado e o mercado, está sendo substituído por um novo conflito, cujas regras ainda não se compreendem, com formas alternativas da democracia, do mercado e da sociedade civil livre. Seria o caso de perguntar se nós temos base social prática para isso no Brasil, e eu diria que sim.
Desafios - Quais segmentos da população serão os pilares do seu projeto?
Mangabeira - Tudo depende do encaminhamento coletivo de soluções coletivas para problemas coletivos. Portanto, de política. Precisamos desesperadamente do casamento da política com a imaginação, sobretudo com a imaginação institucional. Agora, surge no Brasil, ao lado dessa classe média tradicional, uma nova classe média, morena, mestiça, que vem de baixo, que luta para abrir pequenos negócios, que estuda à noite, que inaugura no país uma nova cultura de auto-ajuda e iniciativa. Desconhecida das elites brasileiras, essa nova classe média já está no comando do imaginário popular. Para a maioria do nosso povo, ela é essa vanguarda de batalhadores e emergentes que a maioria quer seguir. Hoje, a grande revolução brasileira seria o Estado inovar nas instituições, primeiro nas econômicas e depois nas políticas, para permitir à maioria seguir o caminho dessa nova vanguarda. O que falta é a organização intelectual e política do caminho e da base, e este é o meu trabalho.
Desafios - Uma reforma política seria uma quinta área do seu projeto?
Mangabeira - Exatamente. Tenho conversado com o presidente Lula sobre a entrada da pasta de Assuntos Estratégicos no campo da reforma política. Há quem imagine a reforma política como antecedente à reorientação econômica e social. Não é assim na história moderna. A experiência comparada mostra que os países mudam as suas instituições políticas quando precisam mudá-las para alcançar um fim econômico e social que desejam. A reforma não poderá ser uma preliminar da reorientação econômica e social.Virá no curso da luta para mudar o rumo social e econômico do país. Essa mudança política necessária tem um horizonte longínquo e um ponto de partida. O horizonte é criar uma democracia de alta energia,mudancista,que não faça a mudança depender da crise. Mas isso é o futuro, é o horizonte, isso não é para já. O ponto de partida é tirar a política da sombra corruptora do dinheiro, criar as condições para governos que não seja no bolso dos endinheirados. Não é um mistério como fazer isso. Passa por quatro conjuntos de medidas: o financiamento público das campanhas eleitorais; a construção de carreiras de Estado que substituam a grande maioria dos cargos comissionados ou discricionados; a revisão do processo orçamentário, para que ele não seja uma negociação perene e flutuante; e medidas que favoreçam a vida partidária e a fidelidade partidária.
Desafios - O que falta para fazer isso?
Mangabeira - O bom do Brasil é a sua vitalidade, e o ruim é o seu conformismo, a falta de fé em si mesmo. De todas as minhas ambições, a maior é ajudar a instaurar no país uma dinâmica de rebeldia. O grande poeta alemão Friedrich Hölderlin disse que quem pensa com mais profundidade são os que têm mais vida. Mas não basta ter vida, é preciso ter inconformidade e iluminar a inconformidade com a imaginação. Justamente porque está cheio de vida, o Brasil é anarquia criadora. Uma das ambições nacionais tem que ser transformar espontaneísmo inculto em flexibilidade preparada. E descobrir as instituições econômicas e políticas apropriadas a uma sociedade inquieta, inovadora.A fórmula que nós procuramos é a fórmula que ajude a quebrar as fórmulas. Este é outro tema central de todas essas propostas econômicas e políticas.
Desafios - O senhor pretende conversar com estados e municípios?
Mangabeira - Vou visitar todo o país. Um projeto de Estado precisa ser construído junto com os estados federados, e ainda mais com os governados pela oposição, para demonstrar ao país a possibilidade de uma agenda positiva feita acima das divisões partidárias. Já fui a Minas Gerais e Rio Grande do Sul e fui recebido calorosamente.Acho que há muita abertura no Brasil para isso. Estamos à busca de um projeto magnânimo e ninguém quer saber de sectarismos mesquinhos. A nação tem consciência da gravidade de todos os nossos problemas e da necessidade de um grande projeto de país, e todo mundo intuitivamente compreende que um projeto de país não pode ser construído em um ambiente de mesquinharia e de sectarismo.
Desafios - Diria o mesmo de suas conversas com os sindicalistas?
Mangabeira - Tratamos de assuntos muito penosos e controvertidos e avançamos muito.Vejo que há linhas de convergência preponderante sobre o grandes temas. Para reverter a queda da participação dos salários na renda nacional não basta influenciar o salário nominal, como a política do salário mínimo. Isso tem certa eficácia, mas insuficiente. Temos no Brasil uma grande desigualdade salarial. Por isso, é provável que as iniciativas destinadas a aumentar a participação dos salários na renda nacional tenham de ser, no início, diferentes para diferentes níveis da hierarquia salarial. Na base da hierarquia salarial, dos trabalhadores mais pobres e menos qualificados, o objetivo é pelo menos não castigar quem empregue e qualifique, diminuindo os encargos que oneram a folha salarial. Importante também é a proteção de trabalhadores temporários ou terceirizados, que no Brasil, como em todo o mundo, formam uma parte crescente da força de trabalho. Como protegêlos e representá-los sem minar a posição dos trabalhadores organizados, que formam o cerne do corpo de trabalho da empresa?
Desafios - Vem algum exemplo de fora?
Mangabeira - O mundo está vergado sob uma ditadura de falta de alternativas. Qualquer alternativa que surgisse e que combinasse uma demonstração prática com uma mensagem universalizante poderia ter uma repercussão sensacional. Nós temos condições especiais para sermos um terreno de experimentação. Um dos nossos maiores problemas é que não pensamos em nós mesmos, assim. Nosso costume é só prosseguir em um caminho que tenha sido antes autorizado pelos países que nos acostumamos a tomar como referência. E isso não presta.
Desafios - Agora, Índia e China são tomadas como referência?
Mangabeira - Sempre o outro. Então, precisamos olhar para o mundo todo. Mas não há nenhum país nem rico nem em desenvolvimento que possamos tomar como modelo. Os exemplos são fragmentários. Nenhum país do mundo atual representa a onda do futuro em que possamos surfar. A nossa principal preocupação deve ser consolidar a nossa estratégia, informada pelas experiências do mundo todo, mas não autorizada por ninguém. Na história, os obedientes são castigados. Os prêmios vão para os rebeldes. A rebeldia é condição necessária, mas não é suficiente. Porque ela só é eficaz quando iluminada pela imaginação.Desafios - As viagens à Índia, Rússia e França trataram de uma aliança que inclua transferência de tecnologia?Mangabeira - Eu não chamaria aliança, que tem um sentido técnico. Nós não temos alianças. É uma parceria estratégica com a transferência de tecnologia. Fui primeiro à Índia e depois, com o ministro Nelson Jobim, da Defesa, à França e à Rússia. Com todos esses países, o importante é expressar a vontade política de fortalecer no mundo um pluralismo de poder e de justiça, e a partir desse compromisso básico construir colaborações em Defesa e colaborações em matéria de desenvolvimento. As segundas são pelo menos tão importantes quanto as primeiras. É assim que estamos procedendo. Muita gente caracterizou essas viagens como viagens de compras, mas não foram. Não compramos nem nos credenciamos a comprar coisa alguma. Estamos tentando descobrir quais as colaborações de Defesa e civis que fortaleçam a nossa capacidade de abrir novos caminhos, em Defesa e tudo o mais. E agora eu direi, com franqueza, o problema não é o mundo, o problema é o Brasil. Para quem tem idéia clara e vontade forte, o mundo está cheio de oportunidades.
Desafios - Isto fortalece uma visão Sul-Sul?
Mangabeira - Não é só. Sul-Sul é uma parte, mas não o todo. Nós não devemos fazer - estou dando a minha opinião pessoal -, e não creio que estejamos fazendo, uma política apenas terceiromundista.Nós precisamos nos entender não só com esses outros grandes países emergentes, mas também com a União Européia e com os Estados Unidos. Mas a condição básica para tudo isso é que nós nos levantemos, que nós tenhamos uma idéia a respeito do nosso futuro nacional, que nós saibamos o que queremos. Com isso, tudo será possível. Sem isso, nada será possível.