terça-feira, 29 de setembro de 2009

Pactum Scelleris (Pacto Criminoso)


Por: Hanka Nogueira*



“Dai a César o que é de César,
e a Deus o que é de Deus”

Marcos: cap. 12, ver. 17



Recentemente em uma nova investida colonizadora, a Igreja Católica por meio do decreto que tramita no Senado Federal (Projeto de Decreto Legislativo 1736/2009), já aprovado na câmara dos deputados, que estabelece um acordo entre a “Santa” Sé e o Estado brasileiro prevê, entre outras coisas: ensino religioso obrigatório nas escolas dando ênfase a religião católica; estabelece juridicamente a concessão de imunidade tributaria total para a igreja católica; passa aos cofres públicos a responsabilidade pela manutenção, reforma e preservação do patrimônio da igreja; institui a prestação obrigatória de assistência religiosa em presídios, hospitais e inclusive tribos indígenas; prevê a concessão de isenção fiscal para rendas e patrimônio de pessoas jurídicas eclesiásticas; isenção para a Igreja católica de cumprir as obrigações impostas pelas leis trabalhistas brasileiras, ou seja, a igreja pretende se lastrear nos recursos e na permissividade do Estado brasileiro para, alem de outros interesses, contra-atacar o crescimento do segmento evangélico no país. Se isso ocorrer, a condição do Brasil como Estado laico - É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias, cap. I art. 5º da Constituição Federal (Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos) - Terá um dos princípios básicos da cidadania e da liberdade usurpado em nome de um projeto fascista e retrogrado, cometendo-se um enorme equivoco em nome de um Deus privativo e monopolista. A História nos mostra o desastre que é se misturar Estado e religião, assim como, a condução sócio-politica de uma nação alicerçada em um conceito religioso imposto.


Conivência e conveniência – Pensar o acordo entre o poderoso Estado romano e o Brasil como algo desassociado do momento impar em que vive a sociedade brasileira no contexto interno, é no mínimo reducionismo de analise, e sendo assim, tal atitude é extremamente providencial para a igreja. Hoje, o povo brasileiro se vê frente a sua formação sociocultural admitindo a necessidade de se buscar parâmetros que desmistifiquem deformações ideológicas e filosóficas impregnadas dos valores coloniais de outrora, portanto, caminhando para o reconhecimento do debito social, racial e político que possuímos. Por meio de reflexões que abordam o papel da mulher na sociedade contemporânea e o poder sobre a maternidade que envolve principalmente o direito de escolha em abortar ou não a gravidez; da nova formação dos núcleos familiares a partir das uniões homo-afetivas; os questionamentos do debito secular que o Estado, assim com a igreja, possui com índios e negros brasileiros; os movimentos de valorização e respeito as religiões de matriz africana e outros segmentos; o papel da igreja na atualidade e a participação essencial que teve na construção do golpe militar de 1964. Como a História demonstra, a folha corrida é extensa e os desígnios de “Deus” não podem ser confundidos com a condução política e democrática do Estado.


Católicos graças a Deus? - O Estado moderno se funda em alicerces jurídicos que visam a liberdade de escolha e o exercício da democracia como fundamento primordial para a manutenção da ordem. Direitos, que nos são garantidos pela constituição de 1988 - Constituição Cidadã -, mas, como efetivá-los diante da verdadeira deformidade cultural brasileira no que tange a relação entre a lei e a pratica? Como materializar os direitos com base no cumprimento das obrigações em uma sociedade que prima pelo privilégio e pelo “jeitinho” como parâmetro de vitória? Definitivamente, não somos o que dizemos ser. Ordeiros, democráticos, igualitários, justos e espiritualizados. Somos sim, católicos por imposição histórica e cultural, e como católicos trazemos no intimo o ranço dos fundamentos judaico-cristão. Esperamos pelo messias, pelo salvador, e delegamos a essa quimera o porvir da nossa vitória, o nosso futuro agraciado não em leite e mel, mas em privilégios e graças particulares. Tudo isso com a benção do criador que tudo perdoa.


O Estado Democrático de Direito no Brasil, parte da consecução das suas ações na suposta insuficiência da população frente a questões importantes. As ações são pensadas e baseadas na inércia e na falta de informação da maioria, fruto de arranjos e engôdos empurrados a sociedade como se fossem verdades absolutas. Baseando-se nessas deformidades para tornar velhas mentiras em verdades inquestionáveis, criando um ambiente onde se ouve quotidianamente a afirmação que a religião, assim como a política, não deve ser discutida e não merece ser colocada a luz da reflexão. A aplicação da lei e a criação das normas para a convivência em sociedade é dever do Estado, mas, não podemos pensar o Estado como normatizador das relações apartado da atualidade social e do contexto histórico em que esta inserida a população. Não podemos pensar o Estado como algo intangível, onisciente, acima do bem e do mal. Somos o Estado, e como tal, nos cabe a condução justa das medidas sociais de convivência respeitando-se a diversidade plurietnica, multicultural e plurireligiosa da nossa sociedade. Dentro dessa premissa, pensa-se as religiões como instrumento de sustentabilidade moral e espiritual dentro de um verdadeiro espírito democrático e libertário.


Fé, verdade, religião - Religiosidade, esse sentimento é a força-mestra da convivência social. A religião, que é a espiritualização da religiosidade, reúne pessoas com a mesma afinidade espiritual, estabelecendo rituais, regras, hierarquias, locais próprios e modus operandi para sua funcionalidade. O Estado brasileiro precisa garantir o direito da livre expressão religiosa, tendo como fato o vasto numero de manifestações, praticas de cultos, seitas e outras formas de crença e fé que possuem o povo brasileiro. Manifestações que possuem o direito de serem compreendidas e respeitadas em sua complexidade, sem preconceitos, julgamentos e perseguições impetradas seja por quem for. Mas, o acordo vai na contramão da História e se apresenta totalmente “desligado” das reais necessidades da população em seu processo contemporâneo de transformação social e cidadã. Evidenciando a tentativa de alienação e aculturação por parte de organismos e grupos que secularmente agem nas sombras da desinformação, usurpando direitos e perpetuando os seus privilégios.



* Educador, Diretor de Projetos e Pesquisa da Superintendência de Promoção da Igualdade Racial do Município de Lauro de Freitas - Bahia