quarta-feira, 8 de julho de 2009

A Índia nossa de cada dia



A dramaturgia brasileira exerce um poder imensurável no inconsciente coletivo da população. Atores são perseguidos, amados ou odiados tão rapidamente quanto o desenrolar da odisséia das personagens, assim como, a trama televisiva passa a ser vista e vivenciada como “realidade” pela maioria da população. Instantânea, imediatista, facilmente diluída e copiada, a novela exerce um papel dominante na “programação” da cultura de massa do brasileiro, fruto da formação educacional onde se acredita que o ato de pensar é uma tarefa difícil e dolorosa. A televisão exerce o seu papel de entreter - ainda que a transfigurem em ferramenta de “informação” - esse eletrodoméstico adquire vida própria a ponto de não se “conseguir” desligar o ente tão presente no cotidiano da civilização moderna. Fantasia e sociedade se misturam em um caldeirão de sentidos – em sua grande maioria desconexos – quase sempre, “formando” opiniões, gerando preconceitos e conceitos equivocados ou superficiais da realidade. Atualmente, a novela que se propõe representar a sociedade indiana não é diferente. A complexidade da Índia e sua identificação com a sociedade brasileira passam despercebidas na trama novelesca da Glória Peres. O que fica é o folclore e a transfiguração de uma sociedade, que guardada as devidas proporções, é bastante parecida com a nossa. Isso mesmo, a Índia é aqui.

A civilização original - Uma das civilizações mais antigas existente, a Índia é um caldeirão racial sem precedente, ao contrario do que é apresentado pela novela, as castas obedecem a um rígido sistema de estratificação sócioreligiosa-racial baseada na cor da pele, regida pelo Hinduismo – como nos informa o historiador Carlos Moore em sua obra O Racismo Através da Historia: da Antiguidade a Modernidade - A população nativa indiana esteve predominantemente constituída pelo dravidianos, gente de pele negra, responsáveis pela grande civilização surgida no Vale do Indo (Mohenjo-Daro, Harappa, Chanhu-Daro). Invadida e conquista por tribos bélicas de pele branca (1500 a.C.), denominados de “arria” (palavra em sânscrito antigo, cujo significado é: gente de pele nobre) daí a denominação, ariano. Os conquistadores impuseram uma nova ordem social baseada em características fenotípicas – cor da pele – assim, o sistema original de castas (varna), termo sânscrito de origem ariana que se traduz literal e etimologicamente por cor da pele, inicialmente surgido da ordem social nativa e caracterizado em sua origem exclusivamente por funções sócio-profissionais hereditárias, tornou-se racializado após as conquistas arianas. Ás castas constituem até os dias atuais as bases da violenta ordem racial que domina a sociedade indiana, pois, tanto os pertencentes a casta “inferior” (sudra) quanto á castas dos “intocáveis” (dalit e advasis) são exclusivamente de pele negra. Na Índia, a cor da pele clareia-se a medida que se suba na hierarquia das castas, e vise-versa, enegrece-se á medida que o individuo esteja inserido nas castas ditas inferiores e nas categorias desprezadas, fora do sistema de castas os chamados “intocáveis” – dalits. Atualmente a sociedade indiana é composta por mais de 3.700 castas e sub-castas.

Parias e demônios – parias ou intocáveis, como são conhecidos os que não figuram na ordem das castas, ou seja, abaixo das castas inferiores, são a base de toda a pirâmide social indiana onde exercem o papel de serem “poeira”. Invisíveis, como os invisibilizados da sociedade em que vivemos: mendigos, moradores de rua, pedintes e até trabalhadores de baixa remuneração como garis, domésticas, trabalhadores da construção civil entre outros que possuem baixa qualificação, portanto, sem visibilidade social positiva na nossa preconceituosa sociedade, em sua grande maioria representados por indivíduos negros. O Estado brasileiro e as questões mal resolvidas de sua Historia colonial perpetuada nos privilégios e no racismo velado da contemporaneidade , assim como a Índia, trava uma batalha para implementar o programa das políticas de cotas – Ações Afirmativas – como forma de corrigir as distorções religiosas e raciais daquele país. Inicialmente elaborada após o fim da Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918), as Ações Afirmativas indianas sempre enfrentaram o ataque feroz das castas superiores, que não aceitam a presença dos advasis e dalits no parlamento, nas universidades e nos postos de comando do Estado. Um povo alegre, colorido, místico, mas, ainda vivendo sobre uma estratificação racial milenar, das mais complexas e agressivas que se tem registrado na História. A trama de Glória Peres passa bem distante da abordagem correta do real problema existente, assim como, a sociedade brasileira insiste no discurso da democracia racial contrariando os dados oficiais que denunciam o fosso racial nos setores da educação, da política e da economia em nosso país.

Em meio a mais de 3000 deuses, onde o Deus de um é o demônio do outro, gerando um movimento de intolerância contínua e extremamente agressiva em meio ao caos da sua superpopulação, a Índia figura entre os países emergentes alicerçado principalmente pelos avanços tecnológicos e pelo fato de falarem o inglês fluentemente “graças” a colonização inglesa. Intolerância religiosa, racismo e progresso cientifico se misturam em meio a um caldeirão plurietnico e patriarcal duro, fruto de um passado mal resolvido e dissimulado. Manter os privilégios de uma minoria em meio a miséria da maioria, subvertendo a ordem democrática moderna, é o que faz de melhor um país alicerçado, ainda hoje, em um projeto colonial baseado na exploração de pessoas de cor. Mas, midiaticamente só vemos a beleza da terra, as danças, a riqueza cultural e a harmonia das raças. A alegria em viver de maneira criativa a miséria de cada dia é festejada como forma de superação, naturalizada, ainda que não seja por causa do seu processo de reencarnação, afinal de contas, estou falando do Brasil e não da Índia. Sem duvida, a índia não é tão longe.

Hanka Nogueira

Luz e Força