segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

A Pobreza Enquanto Negócio

Valter da Mata*

Assistir os 104 minutos do filme de Sérgio Bianchi, Quanto vale ou é por quilo? (2005), não é uma das tarefas mais agradáveis. Livre adaptação do conto “Pai Contra Mãe” , de Machado de Assis e entrecortado com pequenas crônicas sobre a escravidão, extraídas dos autos do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, o filme expõe as mazelas e contradições de um país que ainda procura seu caminho para seu desenvolvimento ético e moral.
Num tom semi-documental, o filme nos introduz ao universo nada glamouroso das atividades das Organizações Não Governamentais (ONGs). O que fica explícito é que a pobreza e a miséria são tratadas como um negócio muito lucrativo e a exploração dessas se revela num jogo cruel, onde o que vale é o quanto se ganha. No longa vemos como os projetos sociais servem de pretexto para toda sorte de falcatruas e negociatas como lavagem de dinheiro, desvio de verbas, enriquecimento ilícito, sonegação fiscal, entre outras.

Fica difícil rotular mocinhos e bandidos nesse caldeirão caótico. Na melhor linha ‘farinha pouca, meu pirão primeiro’, os personagens mostram uma completa falta de ética e desde que eles possam levar vantagem em algo, tudo é válido e justificável. Ricos e pobres, homens e mulheres, negros e brancos, todos ajudam a compor um quadro grotesco de injustiça e mesquinharia.

As relações raciais aqui são retratadas de forma interessante, numa comparação entre o Brasil Império e o Brasil Conteporâneo. As associações são diretas, sem direito a elaborações mais sofisticadas. A senzala vira favela e periferia e os escravos agora se chamam assalariados ou desempregados, sem direito a ração diária. Quadro curioso é o retrato do Capitão do Mato, enquanto no Brasil Império, este personagem ganhava a vida a perseguir e capturar negros escravizados fugidos, nos tempos atuais continuam a sujar suas mãos de sangue, fazendo o trabalho sujo para os senhores de engenho, metamorfeados em polícia e grupos de extermínio.

A exploração da pobreza é aqui apresentada, num discurso cínico justificador de algo que gera emprego e renda. As ONGs são dirigidas por pessoas que tem asco do público alvo, não se importando com as reais necessidades desses grupos oprimidos. Na verdade esses grupos são vistos como peças descartáveis, engrenagens de uma máquina que as devoram. Os projetos são pensados fora de qualquer necessidade real da comunidade, são decididos em gabinetes e o critério básico é quanto cada participantes do planejamento, assim como como e quanto sua curriola irá lucrar com a execução do projeto.

Programas de inclusão digital que só ensinam os jovens a lidar com orkut e msn, programas de cunho religioso sem o menor respaldo científico para combate ao vício de drogas, cursos de artesanato, dança, instrumentos musicais e toda sorte de “capacitação profissional” são oferecidas sem a menor participação daqueles que são o público alvo. Tudo isso com o consentimento do governo, que injeta milhões de reais nesses programas e os repassam às ONGs gerirem esses recursos.

Para quem não entra no esquemão das negociatas e atividades ilícitas, só restam as migalhas. E por falar de migalha, o quão é chocante a cena na qual um grupo de manifestantes indignados com a corrupção de um gestor dessas ONGs, cala-se imediatamente quando são convidados a participar de uma festa em homenagem ao própio corrupto. A suntuosidade do lugar emudece todo o grupo, que mesmo deslocado por não estarem trajados à rigot, não perde a oportunidade de desfrutar a ocasião nababesca.

No filme vemos uma jovem pobre da periferia, em avançado estado de gravidez, solicitando ao seu companheiro desempregado que o mesmo compre uma tintura para o seu cabelo enquanto folheia uma revista de celebridades. Para logo depois outro personagem afirmar que o desejo de consumo de todas as classes sociais pe determinado pela classe A. Nesse país você é o que você consome e o jogo midiático nos impele a buscar a qualquer custo os nossos 15 minutos de fama.

O quadro pintado é pessimista, Bianchi não nos mostra luz no fim do túnel. E apesar do filme terminar com uma celebração de uma família pobre, saímos com a incômoda sensação de que não há o que comemorar. O país expõe suas veias anti-éticas, onde ser honesto é sinônimo de ser otário. Sim, esse é o retrato do Brasil, talvez cronicamente inviável, mas aí já é uma outra história.
Mata, Valter (2008) A Pobreza enquanto Negócio Presente! revista de educação / Centro de Estudos e Assessoria Pedagódica. Ano 16, n.4, (dez/2008) Salvador:CEAP,n.63.
* Valter da Mata é mestrando do Programa de Pós-graduação em Pisicologia da Universidade Federal da Bahia, docente do Programa de Metodologia dos Estudos Africanos e Afro-brasileiros da Famettig e Vice-presidente do Conselho Regional de Psicologia Região 03 – Bahia / Sergipe.

6 comentários:

Unknown disse...

O primeiro grande mérito dese blog é provocar, isto é fato.
Mas quem provoca quer ser cutucado, pois não.

O Sr. Valter Damata em seu texto faz uma análise parcial e de "helicóptero" das ongs reais com a ong retratada no filme. Isto mostra que ele não conhece o universo das ongs reais e generaliza de "orelha".No filme de Bianchi participam alguns atores daqui de São Bernardo de uma ong exemplar onde trabalhei por 07 anos, o PMMR-SBC e ele(O Bianchi) só trabalhou com atores que saíram das ruas porque existem ongs sérias que fazem um trabalho real e de boa qualidade para combater a exclusão social. Sobretudo de populações "invísiveis" como o povo que vive na rua. Então, aconselho ao SR. DAMATA a buscar conhecer melhor o pseudo universo pesquisado, antes de sair falando tanta asneira. Na época do lançamento, o filme teve enxurradas de críticas iguais a dele que não serviram e não servem para nada. Porque se existem ongs num país como o Brasil é porque o Estado não faz o seu trabalho e só os movimentos sociais e ongs juntos fazem "alguma pressão" por políticas que venham a construir o ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. Se o Brasil hoje tem algum avanço social; para quem sabe do que fala, este avanço é luta e conquista dos M.Ss. E não benesse do Estado ELITISTA ou luta dos acadêmicos que se locupletam das universidades públicas do governo e fazem delas reduto das classes média e alta e ponto. É Claro que tem ong picareta! tem sim, estamos no Brasil, mas na europa também tem! O problema são as generalizações toscas. Faltou o Damata explicar no texto dele como é que no Brasil atual e real, ainda literalmente na mão da elite, se faz justiça social e combate a 500 e tantos anos de exclusão, sem ongs e sem movimentos sociais...! Não basta criticar, na crítica séria tem que ter também a nova tese que vai fazer a diferença em relação aquilo que se critica.
...e vamo debater!

Sue M disse...

Nem tanto, nem tão pouco...
os ânimos se acirram quando se trata de reler o Brasil...é interessantíssima essa postura impositiva dos "olhares críticos" (e privilegiados)dessa nossa nação.
Eu teceria algumas humildes considerações sobre a discussão. Inicialmente, penso que não é válido, nem legítimo discorrer sobre qualquer obra ou autor sem reconhecer uma historicidade “estilística” (não elitista, por favor!!!) e identitária com o enquadramento de sua obra (os pós-modernos que me poupem). Vejo nisso, no mínimo, uma leviandade muito comum em todos aqueles que se apropriam da criticismo neste país, seja ela acadêmica ou não. Sérgio Bianchi (que tem um sobrenome, digamos, colonizador-comprometedor, rs) não se intitula a 'palmatória do mundo', as suas obras são abertas e isso não significa que não possam ser criticadas, contraditas ou reafirmadas. Muito acima dessa intenção, e neste caso não cabe mencioná-lo como detentor de ovação ou repúdio, estão a maior parte daquilo que dirigiu, até hoje, no cinema nacional. “A Coisa Secreta”, “Cronicamente Inviável”, “Mato Eles?” são, certamente, obras abertas e, no mínimo, imprescindíveis ao exercício da criticidade e não do criticismo. Valorizar as demais obras desse cineasta nos permitiria ter uma compreensão da sua iconoclastia e azia social com mais lastro.
A postagem do DAMATTA, como centro da discussão, dá-me a impressão de um efeito colateral muito comum das obras de Bianchi. Quando ele cita “Ricos e pobres, homens e mulheres, negros e brancos, todos ajudam a compor um quadro grotesco de injustiça e mesquinharia” e refere-se a todos os personagens da trama, eu fico com a impressão que, talvez, ele (Walter) tenha sido mais uma vítima da subversora proposta da criticidade desse cineasta. Não há mocinho, tampouco bandidos. Mas há preços, razões, motivações, moral , ética e situações que se estabelecem acima de um discurso meramente deflagrador do estados de coisas per si e sobre o qual descansa, cinicamente, toda elite jurássica ou emergente no nosso país . Vejo na postagem do DAMATTA um comentarista imparcial, objetivo e distante que opina com propriedade sobre algo que ele, subjetivamente, não admite ser parte. É o lado nocivo da intelectualização brasileira: vaidade e cabotinagem. O cinema nacional, Bianchi e a miséria nacional são parte em si de Sue, Hanka, Nsema, Damatta e quase duzentos milhões de pares nesta terra tão perdulária. Portanto, se algo me ‘belisca’, eu devo gritar. Sorrir, fingir não me incomodar e/ou agradecer é coisa de filme hollywoodiano.
Retomando o foco da discussão, o papel do terceiro setor, especificamente das ONGs no Brasil, eu citaria que há uma incongruência crescente entre o que NSEMA refere-se, didaticamente, ser o "papel político" (discurso)de preenchimento de lacunas do estado nacional cada vez mais minimizador das suas responsabilidades e a prática cada vez mais explícita em se priorizar a 'captação de recursos' de maneira profissionalizante (individualizada) em detrimento de uma sub-consciência coletiva, promovida por grande parte das as ONGs do nosso país, o que me sinaliza a secundarização real da ação política propriamente coletiva. A impreterível necessidade de tornar-se, quase, uma empresa (isenta ou diminuta em contribuição fiscal) tem me direcionado à observância da diluição de parte importante da função social reivindicada pelo setor e que justificaria a existência dessas organizações. NSEMA trata movimentos sociais e ONGs na mesma esfera, o que, para mim, e inúmeras pessoas que labutam com os movimentos sociais é considerado equivocado do ponto de vista da prática. Aliás, tenta-se confundir sob uma mesma nomenclatura sociedade civil, movimentos sociais e ONGs, designações que, na verdade, representam instâncias, ações e princípios de origem sócio-econômico-filosófica distintas.Eu creio na coletividade pela coletividade. E desacredito na individualidade pelo coletivo, se é que me faço entender. Creio veementemente, ainda hoje, em associações, em cooperativas e em todas as formas efetivas e eficientes de ‘empoderamento’ (olha lá outro terminho dúbio, rs) social dos cidadãos. Neste ponto, acresce-se à minha descrença sobre o papel atual das ONGs uma ululante nulidade em propostas de emancipação dos indivíduos. As ONGs se especializaram em propostas chamadas “cultura listas” que longe de reafirmarem a construção de identidades locais e/ou nacionais, tem buscado sedimentar discursos e práticas folclorizadas sobre a própria cultura, muitas vezes adornadas de preconceitos e prejuízos emancipatórios ao seu público-propagador.
Pensando nas duas postagens, percebo que os extremos dificultam qualquer possibilidade de complementaridade crítica sobre o tem. NSEMA propõe uma visão, ainda muito ingênua sobre os desdobramentos sociais que esse setor adquiriu no estado brasileiro e, inclusive, se defende invisibilizado pela proposta de ação pára-política daquilo que ele crer acreditar. Aqui, eu diria fraternalmente ao (ou à) NSEMA que criticar e cutucar, como propõe Hanka, é saudável quando se é possível, fazê-lo com generosidade. Já DAMATTA, remete-me à postura distanciada e blasé da própria sociedade criticada na película. De lá é possível diagnosticar e generalizar argumentos pré-fabricados que poderão manter-se sobre o disfarce da transparência, diametralmente invisibilizada. Eis que, enfim, encontram-se os dois, mas parodiando Saramago, eles preferem ensaiar e reafirmar a própria cegueira.

Sue M disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Sue Querida,

Eu poderia tecer um tratado á guisa de resposta. Mas estou bem ocupada com o trabalho de fazer alguma coisa face ao estado inoperante. Eu trabalho em Ong e cada possibilidade de acesso a cidadania é preciosa demais para desperdiçar com as esgrimas lítero-eruditas dos comentaristas de plantão...,
A nossa pesudo generosidade nem sempre alcança a medida da avareza alheia...!
Por hora é isso,
Nsema,

Sue M disse...

"Eu trabalho em Ong e cada possibilidade de acesso a cidadania é preciosa demais para desperdiçar com as esgrimas lítero-eruditas dos comentaristas de plantão..."
Então, você só perde tempo "precioso" se for teu o holofote? Entendi...
Faço meu o teu ato falho, então...rs

COLÉGIO SANTO ANTÔNIO disse...

é a mais pura verdade !